quinta-feira, 26 de abril de 2018

4341) A série "The Terror" (26.4.2018)



Fazia algum tempo que eu não assistia uma série de terror, desde alguns episódios de Penny Dreadful que vi no ano passado. Terror foi virando um gênero meio pornográfico. Digo “pornográfico” no sentido de todo tipo de narrativa que arbitrariamente escolhe 2 ou 3% da experiência humana e faz um livro ou um filme inteiro mostrando unicamente aquilo, graficamente, explicitamente, continuamente, insistentemente, reiteradamente, de forma tão repetidamente cansativa quanto estes advérbios.

O terror do cinema e da TV tem se especializado em duas coisas: 1) exaltar aberrações ou monstruosidades psicológicas (afirmo que o Herói Arquetípico na narrativa comercial do século 21 é o Serial Killer, e quem puder que me desminta); 2) mostrar em close-up vísceras, mutilações, esfrangalhamentos, torturas, o chamado “gore”, ou pornografia da crueldade.

The Terror (2018), série de TV produzida pela rede AMC (1 única temporada, 10 episódios) tem um equilíbrio notável entre uma certa ambição literária e essas tendências comerciais (digo “comercial” no sentido de uma obra em que decisões estéticas são tomadas com base no retorno financeiro: “vamos mostrar uma mulher sendo esquartejada viva, porque assim venderemos mais ingressos”).

O sadomasoquismo voyeurista das platéias foi industrializado pelo cinema/TV e já está muitos níveis de complexidade acima de narrativas até ingênuas como as dos penny dreadfuls propriamente ditos do século 19 ou as do teatro de Grand Guignol.

Num quadro como este, The Terror é uma série que, se satisfaz em vários momentos a pulsão sádica da platéia, constrói em torno disso uma narrativa coesa, verossímil, cuidadosamente construída em todas as direções, e desse modo quando brota o “teatro da crueldade” ele surge um efeito a mais, e não como o objetivo maior da narrativa.

Aqui, o link para a série completa, dublada ou legendada:

São dez episódios baseados no romance em que o competente Dan Simmons abordou um mistério verídico, que até hoje não foi totalmente elucidado: O que aconteceu com os dois navios da expedição Franklin, que tentaram entre 1845-1850 descobrir a Passagem Noroeste do continente ártico? O que se sabe é que morreu todo mundo, houve fome, doença, crimes, canibalismo, e nem todos os corpos foram encontrados até hoje.



Simmons é autor de pelo menos dois livros de terror premiados e impressionantes: o ótimo Song of Kali (1985), sobre um casal norte-americano em viagem na Índia cuja filhinha pequena desaparece; e Carrion Comfort (1989), sobre um grupo insidioso de telepatas capazes de assumir o controle da mente de uma pessoa desprevenida e fazê-la praticar qualquer ato. Este não li, li apenas o conto que inspirou a série, e não faço questão de ler de novo. (Muito bem escrito, aliás.)

Para mim, a grande obra dele é o díptico de FC Hyperion (1989) e The Fall of Hyperion (1990), uma space-opera de proporções épicas, com imaginação exuberante, centenas de personagens, uma trama tipo Game of Thrones de proporções galácticas. (Vieram outros livros depois na mesma série, mas não li.)

The Terror pega os dois navios da misteriosa expedição Franklin e os imobiliza no mar congelado. A comida começa a ficar escassa, as rivalidades e ódios latentes entre oficiais e marujos vão se agravando, e ainda por cima há uma criatura enorme e meio sobrenatural atacando e comendo pelas beiras a tripulação.

De uma maneira que me pareceu acertada, o filme (eu chamo tudo isso de “filme”, é hábito) se concentra nos problemas técnico-navegacionais dos personagens, e na escalada das tensões pessoais entre eles. Os ataques do monstro, raros a princípio, só se tornam constantes nos últimos episódios, quando prudência, hierarquia, saúde e autoridade já foram pro espaço.

Diz-se na abertura da série que os dois navios, o Terror e o Erebus, eram a tecnologia naval mais sofisticada da época, e isso faz perpassar uma leve tintura de FC na história toda. Dispor da “mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, na expressão de Caetano Veloso, gera uma certa hubris em militares que, como se isso não bastasse, acreditam que a Rainha Vitória e Deus Todo Poderoso os estão protegendo e inspirando suas decisões. (Spoiler: Não estavam.)

Há um paralelismo evidente, e não-forçado, entre a falência da tecnologia e o assédio do sobrenatural. “O sono da Razão produz monstros” (Goya).

Em muitos momentos não há como não ver uma semelhança explícita de clima entre esta série e obras como O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”, 1982, John Carpenter) ou O Coração das Trevas (Joseph Conrad, 1899).  O que chamamos de Civilização não passa de uma bolha. Quando homens poderosos e arrogantes se afastam do centro, percebem o quanto a periferia dessa bolha é porosa, e deixa passar coisas que parece estar mantendo à distância.

Não há nenhum campo-de-força invisível protegendo a Civilização. A Civilização é um consenso, um pacto social coletivo. Quando o consenso se estilhaça, pelas frestas emerge o Tuunbaq.