sábado, 14 de abril de 2018

4335) Os paranauês (14.4.2018)



Um dos melhores elogios que eu já vi alguém receber foi uma vez quando me convidaram para fazer parte de uma equipe de roteiristas que estava sendo formada. Na primeira reunião, em torno da mesa, fomos todos apresentados coletivamente. Este aqui é Fulano, vocês todos conhecem; este aqui é Sicrano, vem de tal lugar, trabalhou com A ou B... E então o cara disse: “E este aqui é Beltrano; pra quem ainda não conhece, é o cara que manja dos paranauês.”

Se tivesse sido comigo eu já podia me aposentar depois dessa, não é mesmo? Nenhum governo, porém, já destinou um estipêndio vitalício para todos os sujeitos que humildemente “manjam dos paranauês.”  No máximo, eles conseguem trabalhar mais do que todo mundo, porque toda vez que rola uma dúvida todos recorrem a ele.

Manjar dos paranauês é ser aquela pessoa a quem vêm ser feitas perguntas essenciais. Isso pode? Isso não pode? Isso está certo? Quem foi Fulano de Tal que é tão falado? Quem foi esse cara aqui? Isso foi assim mesmo? Não vejo nada de mais nisto aqui, então por que todo mundo diz que é genial?

Essa utilíssima expressão tem origem nebulosa, por isso redatores desparanauesados a trocam por “expertise” ou congêneres. Paciência. Tem gente que só entende um conceito se ele estiver trajando terno importado: expertise.

É a palavra brasileira que eu queria investigar melhor. “Paranauê”. Que diabo é paranauê? Pra mim é aquele refrão recorrente dos cantos de capoeira. De vez em quando tem uma dúzia de rapazes e moças, vestidos de branco, dando seus rabos-de-arraia ao anoitecer, na esquina da General Glicério, ou na pracinha da maternidade, ou no Largo do Machado... “Paranauê! Paranauê, paraná!”

Virou um refrão hipnoticamente repetido na canção famosa que é o “Maracatu Atômico” de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, revivida nos anos 1990 por Chico Science e a Nação Zumbi.

É uma palavra brasileira? Fica próxima de Pará, Paraná e “anauê!”, mas é bem capaz de ela ser assim não por causa de Geografia ou História, mas por mera sonoridade.  Porque na hora de cantar, inclusive, a gente manda qualquer coisa que venha à cabeça. A música de Mautner, por exemplo, eu só canto “anamauê”.

Tem horas que ela me lembra “parangolé”, celebrizada por Hélio Oiticica. Claro que o artista não inventou a palavra: colheu-a na rua, que é o jardim das palavras novas. Parangolé é sinônimo de qualquer-coisa, esse-troço-aí, geringonça, trem-de-mineiro... É uma palavra-ônibus pitoresca e des-semantizada, mas com uma riqueza mórfica e etimológica que permite pendurar ali idéias várias.

Um termo que teve uma voga danada a partir dos anos 1970 foi “parafernália”, palavra que designa um conjunto de seja lá o que for; um “guarda chuva” capaz de designar toda uma parafernália de coisas. Foi muito usada em títulos, era tão usada quanto “narrativa” é hoje.

Não podemos esquecer que para é um prefixo às vezes limitador do que se segue. Paramilitar é uma forma não-oficial de ser militar. Paraliterário envolve aquelas literaturas que não são bem consideradas literatura, porque são muito ao gosto das massas. A parapsicologia lida com assuntos muito mais nebulosos do que os da própria psicologia. “Para---“ é como um crachá meio desqualificador.

Paranauê parece não sofrer disso. Não sei se é a associação inevitável com a capoeira, mas eu não acho que essa palavra tenha se formado já de cara com um prefixo grego.

Todo este trecho até aqui são as inevitáveis ruminações que a gente faz quando está embatucado com uma palavra no metrô, ou no bar, ou na padaria, e não pode estender o braço para consultar o manuseado tomo. Nem fui a ele: bastou um gugolzinho de consulta ao Supremo Manjador para ficar sabendo que vem de Paraná, sim, mas não o nome do Estado, e sim a palavra “paraná” em si, que significa rio, sendo “auê” uma saudação. Auê, paraná! Ave, rio!

O interessante é que o termo demonstra ser de origem indígena, mas acabou indo morar no mundo africano, aparecendo em numerosos cânticos e refrões da capoeira.

Manjar dos paranauês é entender de um assunto, principalmente um assunto que envolve atividades práticas. É saber o suficiente para não se preocupar com um milhão de pequenos detalhes, mas saber exatamente quais são os pontos onde não é permitido errar, e mantê-los como objetivo. Assim como o capoeira aprende a usar o próprio peso para se libertar do próprio peso, o manjador resume mil perguntas numa só, que realmente importa, e basta respondê-la de maneira cabal para neutralizar todas as demais.