sábado, 7 de abril de 2018

4333) Minha bolha é o Paraíso (7.4.2018)



Nos EUA existem alguns episódios curiosos de confronto entre o estilo de vida tradicional americano e alguma manifestação randômica do ”Oriente” na vida econômica, política ou cultural dos EUA.

Um deles estou acompanhando pela série Wild Wild Country, na Netflix. É sobre o choque cultural provocado pela criação, em 1981, de uma comunidade Rajneesh no Oregon. Os membros da comunidade, de origem indiana, “do nada” compraram ali um território enorme e montaram um ashram místico. Atraíram dezenas de milhares de pessoas do mundo inteiro, já fiéis de carteirinha.

Existe uma mistura de espertezas pessoais e pureza coletiva nesse movimento que fez Rajneesh em 1981 mudar seu ashram, de uma hora para outra, da Índia para um vale perdido no Estado do Oregon. Talvez porque, entre belezas paisagísticas, o Estado permitisse que quaisquer cento e cinquenta pessoas que compartilhassem tais e tais requisitos pudessem requerer e conseguir oficialmente a condição de “cidade”. Está (dizem eles) na Constituição.

Os EUA se apresentam ao mundo como a terra onde tudo é possível, qualquer sonho pode se tornar realidade, onde basta ter dinheiro, oportunidade e estâmina que o sucesso é garantido.

O ano era 1981, muito menos paranóico no aspecto étnico do que para os norte-americanos de hoje. De início, a chegada daqueles grupos coloridos de jovens recebeu certa simpatia e acolhida no Oregon.

Os seguidores de Rajneesh vestem por comum acordo roupas nos tons de laranja, marrom, lilás, roxo, ocre, variações em torno de uma tonalidade abstrata (imagino eu) que serve como marco zero, ponto central de todas as suas variantes coloridas. A imprensa só os chama de “reds”, vermelhos.

Não que a imprensa os achasse comunistas. Eram as teorias liberais de Rajneesh com relação a sexo que incomodavam os vizinhos, levando-os a imaginar que aqueles milhares de jovens passavam as noites em orgias coletivas.

Sheela, a secretária executiva do guru, compara a certa altura seu ashram com Shangri-La, o vilarejo perdido no Himalaia onde o tempo parou de passar (Horizonte Perdido, de James Hilton). São inevitáveis os atritos entre os hillbillies e rednecks locais e aquela rapaziada loura, florida, hirsuta e colorida, ainda por cima seguindo um profeta oriental.

O documentário (série em 6 episódios, Netflix, dirigida por Chapman Way e MacLain Way, irmãos) mostra aquela história que conhecemos tão bem: uma mudança social fortuita coloca de repente, cara a cara, numa disputa por espaço vital e também por “narrativa”, duas bolhas sociais impermeáveis, cheias de boas intenções, bons argumentos e boa vontade.

Nenhuma das duas tem condições de entender o pensamento da outra, porque cada uma está voltada para “a única maneira certa de viver”, que é a sua. O atrito começa a produzir fagulhas perigosas.

Como tantos grupos de pessoas felizes, pessoas que conseguem construir um paraíso artificial coletivo, os Rajneesh queixam-se o tempo todo de que estão sendo vítimas de xenofobia, conservadorismo, preconceito racial, etc.

Por outro lado, os moradores da cidadezinha ameaçada dizem que tudo que queriam era continuar a vida que escolheram, num lugar distante de tudo, habitado por 50 ou 100 pessoas que eles conhecem desde que nasceram, e não por 10 mil jovens que parecem não tomar banho e vivem numa festa permanente e ruidosa.

Como diz um dos diretores numa entrevista, “tem horas em que eu acho que um grupo está totalmente certo, e meia hora depois aparece uma informação nova e eu começo a achar que quem estava certo era o outro”.

Não é um simples choque entre conservadores e contestadores, nem entre velhos e jovens, nem entre puritanos e hedonistas.

É o choque (que vemos todo dia, nas redes sociais, na imprensa, na vida cultural) entre pessoas tão angustiadamente aferradas à sua maneira de ver que não apenas se recusam a escutar os argumentos do outro lado, mas farão de tudo para que esse outro lado seja calado para sempre, e que elas possam continuar a viver no Paraíso Bolha que construíram.