quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

4295) "Vergonha" de Ingmar Bergman (13.12.2017)



O cinema de Ingmar Bergman  era considerado, durante a fase mais brilhante de sua carreira (anos 1960-70) um cinema intimista, interiorizado, voltado para dramas existenciais e para a micropsicologia das relações amorosas.

Vergonha (“Skammen”, 1968) foi um desvio importante nessa tendência, e na época foi malhado por muita gente.

Os apreciadores dos filmes intimistas se assustavam ao ver Bergman filmando exércitos, bombardeios, crimes brutais. “Cedeu aos críticos engajados,” diziam. “Deixou de fazer o que sabe, e quer agora mostrar aos críticos de esquerda que também tem coragem de criticar os militares”.

Do lado oposto, os apreciadores de filmes políticos torciam o nariz para um filme que em momento algo perdia o viés alegórico, abstrato. Um filme de guerra que não mencionava o nome de um país sequer, um partido sequer, uma ideologia sequer.

Vergonha é um dos melhores filmes de Bergman. Revê-lo hoje quase 50 anos depois de feito mostra o quanto o diretor acertou ao não incluir, por exemplo, protestos específicos contra a Guerra do Vietnam, como lhe foi cobrado na época.

Eva e Jan Rosenberg (Liv Ullmann, Max von Sydow) são músicos de orquestra que moram numa ilha vagamente escandinava, numa casa distante de tudo. O rádio de casa está quebrado, e eles não entendem direito que movimentação de tropas é aquela que veem passando na estrada. Fala-se o tempo todo na possibilidade de uma invasão. Eles estão mais preocupados em cuidar da estufa de plantas e das galinhas, em comprar um peixe ou um vinho quando vão à vila mais próxima.

Discutem com leveza por causa da indolência dele; avaliam se dá ou não para terem um filho. Vê-se que são um casal sem nada de extraordinário, cuja vida é uma mistura de rotina harmoniosa e enfrentamento calmo dos problemas comuns.

Quando a guerra vem, vem passando o rodo em tudo. No primeiro terço do filme o casal vive uma história de amor íntima e discreta, com a fotografia em preto e branco registrando olhares, semi-sorrisos, pequenos gestos. Como disse famosamente Paulo Francis, Bergman é o único cineasta que filma um copo dágua e a gente sente a presença de um copo dágua ali. (Francis devia ter atribuído isso ao fotógrafo Sven Nykvyst, mas todo crítico tem suas viseiras.)

O terço central do filme mostra o tsunami de bombardeios, metralhas, incêndios, prisões, espancamentos, torturas, humilhações, execuções brutais.

O terço final é a lenta deterioração moral do casal. Pior do que a morte, às vezes, é a sensação de ter sobrevivido à custa de concessões que talvez fosse melhor ter morrido sem fazer.

A cada nova investida dos invasores, a casa deles vai sendo mais destruída. E o casamento junto com ela.

Liv Ullmann faz mais um dos papéis que expandiu lentamente ao longo da obra de Bergman: a Mulher Vital. Chamo a essa personagem de Mulher Vital como antítese para a “Mulher Fatal” de tantos filmes policiais hardboiled, a sereia maligna que traz consigo a sedução e a perdição.

A Mulher Vital é quem sustenta psicologicamente um homem inseguro (aqui, Max von Sydow). A mulher dá a esses personagens um foco, um centro, evita que eles se auto-destruam por excesso de voluntarismo ou definhem por falta de iniciativa.

Jan Rosenberg é o personagem mais trágico da história. A guerra pega um sujeito hesitante mas boa praça e o transforma num canalha insensível. As pessoas covardes em geral tornam-se mais cruéis do que as outras quando estão numa posição de poder.

Outro personagem trágico é Jacobi, o ex-prefeito, em princípio o vilão da história. Interpretado por Gunnar Bjornstrand, um ator frequente nos filmes de Bergman, ele é aquele típico funcionário público “gente boa” que se torna aderente de primeira hora ao fascismo da vez. Vira portador do fascismo como quem é portador de uma doença.

A guerra extrai dele o que ele tem de pior, ele sabe disso, e deixa-se matar com a fixidez dos suicidas.

Apesar dos bombardeios e das brutalidades, a maioria das mortes do filme ocorrem fora de quadro. Bergman não é de mostrar tripas explodindo para fora de um abdômen. Mas quando o carro dos Rosenberg, em fuga, para diante de uma casa de campo em chamas e Eva se ajoelha junto ao corpo de uma menininha caída no chão, o enquadramento, o som, a expressão da atriz dão àquela morte anônima um peso de realidade proporcional ao que Francis reconhecia no copo dágua.

A guerra faz mais do que matar as pessoas: deixa-as vivas e mata as pessoas que eram antes. A pessoa que sobrevive no mundo dominado pelo inimigo torna-se meio  cúmplice desse inimigo. Torna-se parte dele. Embrutecida, passa a querer agir como ele, pensar como ele. Não há vergonha maior do que esta, a de sobreviver nesses termos.

A sequência final mostra o casal juntando-se a um grupo que foge para o continente num barco. O motor pifa. A comida acaba, a água acaba. E o barco fica rodando sem avançar, num mar juncado de corpos de soldados em decomposição.

Vergonha é um filme sobre a inutilidade de sobreviver depois que um certo limiar de concessão é ultrapassado.