domingo, 3 de dezembro de 2017

4292) Uma época estranha para ser judeu (3.12.2017





Associação Judaica de Polícia (Companhia das Letras, tradução de Luiz A. de Araújo, 2009; no original The Yiddish Policemen’s Union, 2007), ótimo livro de Michael Chabon, é um romance policial e é um romance de ficção científica (do subgênero “História Alternativa”), em partes iguais. O tipo de livro que agrada a quem gosta dos dois gêneros (como eu) e desagrada a quem gosta de apenas um e acha a presença dos elementos do outro uma intrusão incômoda.

É um roman noir ambientado no Alasca, e seu detetive é Meyer Landsmann, um policial de vida atribulada, convocado a esclarecer o assassinato de um desconhecido, num quarto do pulgueiro onde ele mesmo reside depois que se separou da mulher.

É um daqueles policiais whodunit que na verdade começam como uma espécie de whogotit: o primeiro trabalho do detetive, antes mesmo de pensar em quem teria sido o assassino, é saber quem foi a vítima. A descoberta dessa identidade começa a criar uma espiral cada vez mais larga de envolvimentos, interesses, ocultações, pressões políticas e o escambau.

É um roman noir meio chandleriano, pelo caráter meio cínico e meio angustiado do detetive, cujos palpites toda vez o precipitam em graves enrascadas.

Sem falar no talento de Chabon pra produzir diálogo preciso e cortante, símiles memoráveis (uma paisagem urbana decrépita é “tão bela quanto um ônibus visto por baixo”), descrições vívidas de ambiente ou de situação com dois ou três traços. Sem falar na presença do xadrez, muito mais decisiva aqui do que nos mistérios de Philip Marlowe.

E a ficção científica? Ah, esta é a parte mais divertida. O livro transcorre num presente alternativo cujo ponto de inflexão é o ano de 1948, quando depois da II Guerra Mundial as potências Aliadas tentaram criar, no território da Palestina, um Estado independente para Israel. Palestinos e árabes em geral reagiram com violência, política e militar. Judeus foram massacrados. Os Aliados recuaram. O Estado de Israel não chegou a existir.

O que aconteceu, então? “Eles continuam a fabricar judeus,” diz um personagem, “e ninguém fabrica um lugar onde possa alojá-los.” O Governo norte-americano ofereceu aos milhões de judeus que já estavam de malas prontas uma faixa de terra no Alaska, para que se estabelecessem. Criou-se ali, portanto, o distrito de Sitka – uma espécie de distrito federal para os judeus, administrado pelos americanos, com prazo de reversão depois de 60 anos. Mais ou menos como aconteceu com Hong-Kong, na China.

Este é o cenário do livro, e é o grande trunfo de Chabon (pronuncia-se SHEY-bon): o ambiente geográfico e humano, um estado israelense que em vez de deserto e sol escaldante tem uma paisagem de gelo, neve, frio glacial, todo mundo com capotes de pele e luvas. (Chabon afirma, numa nota, que a concessão desse terreno chegou a ser proposta a Roosevelt quando este era presidente dos EUA, mas não passou no Congresso.)

E os palestinos? Os propriamente ditos vão bem, obrigado, mas os desalojados da vez, no Alaska, são os índios Tinglit, que levaram um chega-pra-lá geopolítico para que Sitka pudesse receber aquele novo êxodo de fugitivos do Holocausto.

Chabon diz que imaginou essa sociedade ao folhear um livro intitulado Diga Isto em Iídiche, de Uriel e Beatrice Weinreich, um manual prático deste idioma dos judeus exilados e que (segundo ele) foi esnobado aqui no nosso mundo pelo Estado de Israel, o qual deu preferência ao hebraico. Diz Chabon (as traduções neste artigo são minhas):

Em que momento da história do mundo existiu um lugar com o que é sugerido no livro dos Weinreichs? Um lugar onde não apenas os médicos e os garçons e os motorneiros falam iídiche, mas também os balconistas de empresas aéreas, os agentes de viagem, os empregados de um cassino? Um lugar onde era possível alugar a casa de verão de gente que fala iídiche, assistir um filme em iídiche, ter sua ponte instalada por um dentista que fala iídiche?

A suposição de um mundo assim, que não existe, levou Chabon a imaginar sua Sitka cheia de condomínios classe-média e favelas, ruas cobertas de gelo, ventos cortantes, uma sucessão estranha de luz do dia e escuridão, e lugares como a rua Max Nordau, o Café Einstein (onde se reúnem os enxadristas), o Hotel Zamenhof. 

O uso do iídiche (principalmente o vocabulário específico de Sitka) misturado ao inglês dá ao livro uma aparência ligeiramente “laranja mecânica”. Há um glossário no final, mas em geral pelo contexto ficamos sabendo que papiros é cigarro, shoyfer é telefone celular, noz  é “tira”, shammes é detetive (como o “shamus” do inglês), sholem é pistola, e assim por diante.

The Yiddish Policemen’s Union ganhou o Prêmio Locus de ficção científica, pelo modo como utiliza, com rigor e imaginação, os pressupostos do subgênero da História Alternativa. É preciso imaginar um presente diferente do nosso, que começou a diferir dele num ponto específico da História.

O livro de Chabon deixa o leitor informado do essencial logo nos primeiros capítulos, para que não se perca; mas à medida que o crime vai sendo solucionado pelas tentativas canhestras mas idealistas de Meyer Landsmann, o lado policial vai se resolvendo e a ficção científica avulta, porque aos poucos a história deixa de se focar no cenário meio gótico e preto-e-branco de Sitka, e a revelar o que acontece (ou está para acontecer) no resto do mundo.

Para quem pertence à cultura judaica a história reserva certamente pequenos deleites que um estranho não percebe. Em todo caso, mais que essas vinhetas específicas vale a prosa de Chabon, e uma trama complexa onde se discute a condição judaica, os percalços de um casamento, a vinda do Messias, as gangues e milícias dos bairros étnicos, as relações hostis entre pai e filho, a impessoalidade da espionagem, os problemas éticos do aborto, as metáforas existenciais do xadrez, a vontade de Deus.

“Os milagres são um fardo para um messias,” diz alguém, “não são uma prova de que ele o seja. Milagres não provam coisíssima nenhuma, a não ser para aqueles cuja fé se compra barato.” Não é o caso do cético e torturado detetive Landsmann, para quem “o céu é um lugar kitsch, Deus é uma palavra, e a alma, na melhor das hipóteses, é a carga da nossa bateria.”