quarta-feira, 15 de novembro de 2017

4287) Sagarana: "Corpo fechado" (15.11.2017)




(ilustração: Poty)

É um dos contos de Rosa em que aparece com mais nitidez a figura do narrador urbano, “gente de cidade e gravata”, no meio dos capiaus. Esse narrador surge em alguns contos do livro Sagarana (1946) e depois vai se diluindo um pouco.

Em Grande Sertão: Veredas (1956), aparece sublimado, metalinguístico, distanciado, como o interlocutor invisível do verdadeiro narrador, Riobaldo.

Em “Corpo Fechado”, antepenúltimo conto de Sagarana, esse “Doutor” dialoga o tempo inteiro com o protagonista Manuel Fulô. Pergunta, estimula, provoca, pede detalhes. Talvez seja neste sentido o conto mais autobiográfico, o que melhor confirma o papel de perguntador de JGR quando na companhia dos seus vaqueiros e capiaus. Ele diz:

Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota.

Assim como o Grande Sertão é a história de Riobaldo contada ao “autor”, “Corpo Fechado” é a história de Manuel Fulô, um tipo pitoresco e meio picaresco, metade ingênuo, metade esperto, que no clímax do conto tem que enfrentar um perigoso valentão local e para isso se submete a um ritual de feitiçaria protetora.

Neste conto, não enxerguei muito a recorrência do tema da “ida e volta”, que está presente na maioria dos contos de Sagarana. Existe, em vez disto, um aspecto estrutural dos mais divertidos: é uma história que começa mais de uma vez. Tem três “idas” sucessivas, a cada fato importante que sucede.

Na edição que tenho (a 10ª.), o conto tem 28 páginas de texto, e principia com Manuel Fulô fazendo para o Doutor (que narra na 1ª. pessoa) um censo dos valentões de Laginha.Vai, vai, vai, com comentários, e na décima página surge isto:

Ora, pois, um dia, um meio-dia de mormaço e modorra, gritaram “Ó de casa!” e eu gritei “Ó de fora!”, e aí foi que a história começou.

O leitor se diverte com tal informalidade narrativa. Esse trecho anuncia que as engrenagens do enredo se põem em movimento com o aparecimento de Das Dôr, a futura noiva de Manuel Fulô e futuro pivô da tragédia. Só que Manuel consome em seguida um longo trecho preparatório explicando ao Doutor de que modo maquilou e vendeu dois cavalos doentes a um grupo de ciganos, e outras peripécias.

E aí, na página 22 do conto, diz-se:

Até que assomou à porta da venda – feio como um defunto vivo, gasturento como faca em nervo, esfriante como um sapo – Sua Excelência o Valentão dos Valentões, Targino e Tal. E foi então que de fato a história começou.

Esse segundo começo é um degrau acima na trama, porque Targino, o terror da vila, vem comunicar a Manuel sua intenção de, antes do casamento, passar uma noite com Das Dôr, exercendo uma espécie de “direito à primeira noite” da tradição feudal. É a crise que desaba, raio em céu azul, infelicitando o pobre do Manuel.

O Doutor se comove com o pavor de Manuel Fulô, porque o Targino “é cobra que pisca olho”: manda e desmanda no lugar, e (diz o Doutor, com seu linguajar urbano-boxístico) “o challenger não aparecia”.

O impasse está feito, raia o dia prometido para o cumprimento da ameaça. O Doutor vai se consultar com o Coronel local, também medroso, que pilaticamente lava as mãos do caso. Vai se consultar com o Vigário:

Então, fui ao Vigário. O reverendo olhou para cima, com um jeito de virgem nua rojada à arena, e prometeu rezar; o que não recusei, porque: dinheiro, carinho e reza, nunca se despreza.

Eis senão quando, na página 26, o narrador diz:

Mas, de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui.

E esse decisivo “terceiro começo” se dá com a vinda de “Antonico das Pedras ou Antonico das Águas”, pedreiro local que “tinha alma de pajé” e propõe um acordo a Manuel Fulô: faria um ritual propiciatório destinado a “fechar o corpo” de Manuel, em troca da “Beija Fulô”, a besta ruana que era a menina dos olhos do capiau. Parece um preço barato, mas a besta e a noiva quase se equiparam aos olhos dele:

– Oh, Manuel! Você gosta mais é da Das Dôr ou da Beija Fulô?
– Me desculpe, seu doutor, mas isto é pergunta que se faça? Gosto das duas por igual, mas primeiro da Das Dôr!...

Não creio que esteja exagerando quando digo que a cena culminante lembra e prenuncia o filme Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, Fred Zinnemann), ou pelo menos qualquer outro dos faroestes que Rosa apreciava:

O Targino já aparecera lá adiante. Vinha lento, mas com passadas largas. E de certo se admirou de ver Manuel Fulô caminhar. Naquela hora, a rua, ancha e comprida, só estava cabendo os dois. E eu pensei no trem-de-ferro colhendo e triturando um bezerro, na passagem de um corte.

Não darei spoiler do final.

“Corpo Fechado” vem no livro logo depois de “São Marcos” e é, como esta, uma história de feitiçaria. Parece ter crescido de dentro da outra, processo criativo que não era estranho ao autor. “Meu Tio, o Iauaretê” (1961) cresceu (ao que se diz) de dentro do Grande Sertão: Veredas, que por sua vez parece ter sido pensado como uma das novelas de Corpo de Baile (1956) e foi se expandindo até ganhar casa própria.

Rosa faz um jogo de simetria entre o amor pela besta ruana e o amor pela noiva; faz outro entre a magia de fechar-corpo e o fato de que Manuel Fulô acredita ser filho natural de Nhô Peixoto, o maior negociante do arraial, e isto de certa forma é uma magia heroicizante de outra natureza.

Picaresca, divertida, verossimilmente improvável, a história repete os triângulos amorosos de outros contos do livro, perpassados de comicidade e tragédia. E, ao dar destaque ao tema dos valentões arruaceiros, prepara o terreno para o clímax de “Augusto Matraga”.

E é cheia dos achados verbais do autor. Imagino os leitores de 1946 ouvindo-o dizer que Manuel e a besta ruana “juntos, centaurizavam gloriosamente”, e que a noite silenciosa do arraial tinha “grilos finfininhos e bezerros fonfonando”. Ou esse diálogo-parlenda, muito semelhante aos que praticávamos na Paraíba:

– Não, porque...
– Porque-isquê!
– A minha...
– Que-inha?
– Cala a boca!
– Que oca?

Quando o valentão chega no arraial, “o povo se mexeu, como água em assoalho”. E ninguém deixa de sorrir como linguajar de Manuel Fulô, para quem “a cacunda do bobo é o poleiro do esperto”, ou “até hoje eu gosto mais de me alembrar disso do que de comer doce” ou o brabo Adejalma tem um “nome bobo, que nem é de santo...”