quarta-feira, 1 de novembro de 2017

4283) O Halloween e o Saci-Pererê (1.11.2017)



Todo ano vai chegando essa época e recomeça a discussão. Chamo a essas coisas “o carrossel das discussões”, porque é um debate cíclico, que nunca se resolve, e que volta todo ano, de acordo com as rotações do calendário.

Uma vez publiquei alguma coisa nas redes sociais curtindo o Halloween e o pessoal me castigou um pouquinho. Como é que eu, um defensor da cultura popular brasileira, um estudioso do folclore, e paraibano ainda por cima, posso gostar de uma comemoração americanizada como essa?

Tem muita gente incomodada com isso, porque não se trata nem de decoração das lojas nos shoppings. São as nossas escolas, que estão promovendo festinhas de Halloween para as crianças, essas mesmas escolas que não se dão o trabalho de lhes ensinar o que são a mula-sem-cabeça, o saci-pererê, o boitatá.

De fato, estes nossos duendes deviam ser mais frequentados e discutidos. Não só eles – outros igualmente interessantes como o bradador, o pé de garrafa, o corpo seco, a mulher do chapéu grande, e outros que mesmo alguns defensores de nossas mais arraigadas tradições nunca ouviram falar.

O que irrita muitos adversários do Halloween é o fato de que ele (como outras coisas) denota aquele nosso complexo de inferioridade deslumbrada diante dos EUA, aquela nossa fascinação viralata diante de tudo que é moda em Manhattan e em Beverly Hills. Concordo. É uma demonstração de que nascemos para entregar de graça nosso ouro e pagar pela bijuteria alheia.

E se formos de fato para o vamos-ver, o Halloween que se comemora em nossas capitais está na mesma prateleira dos Pokemons e Digimons, das festas temáticas de Princesinhas Disney, dos Guardiões da Galáxia, das Tartarugas Ninjas e do Bob Esponja.

Varrer isso da cultura urbana brasileira de 2017? É mais fácil proibir o consumo de Coca-Cola e de uísque escocês no país.

Meu interesse pelo Halloween não tem nada a ver com Brasil ou com Estados Unidos, não tem a ver com as fronteiras políticas dos países ocidentais neste instável começo de século 21. Tem a ver com jazidas profundas, não com os loteamentos da superfície.

O Halloween me interessa justamente porque gosto de ler sobre essa área tão canhestramente classificada como folclore. É uma jazida, como já falei. É material icônico-narrativo com mil anos de idade. Uma cartografia de parte do nosso inconsciente coletivo que se revela através de monstros, duendes, bruxas, magos, demônios, vampiros.

Para mim, o Halloween (o meu Halloween) é vizinho-de-porta da Geografia dos Mitos Brasileiros de Câmara Cascudo, uma das minhas obras de cabeceira. Vizinho-de-porta das bruxas de Goya, do romance gótico europeu, das lendas judaicas do Golem e do Dybbuk, e das lendas árabes dos Djinns e dos Efrites.

É esta, para mim, a área semântica e simbólica dessa festa, e se ela virou uma comemoração pasteurizada e comercializada, sem nada de Brasil, reclamem de quem fez o mesmo com o Natal e o São João.

O Halloween me traz à mente o País de Outubro de Ray Bradbury e as histórias de assombrações de Almirante, e não estou nem aí para a decoração das vitrines do Shopping da Gávea. Halloween pode ser estrangeiro, mas para mim não é Walt Disney: é feito dos romances de Stephen King e dos quadrinhos de Neil Gaiman – os quais, neste sentido estrito, não são americanos nem ingleses, são afloramentos de uma correnteza subterrânea que vem desde a Babilônia e o Egito.

Deveríamos celebrar com o mesmo entusiasmo nosso monstruário luso-afro-tupiniquim?  Sem dúvida, e de vez em quando estou aqui dando uma assopradazinha nessas brasas para que não se apaguem.  Não vejo contradição entre o Halloween estrangeiro e os monstros do nosso “folclore”. São todos consanguíneos. Pertencem a uma cultura anterior ao Mayflower e a Pedro Álvares Cabral.