domingo, 15 de outubro de 2017

4278) "Mar Paraguayo" de Wilson Bueno (15.10.2017)




Neste ano completam-se 25 anos de lançamento deste livrinho fora-de-esquadro de Wilson Bueno, Mar Paraguayo (São Paulo: Iluminuras, 1992), surgido sem alarde, mas que durante esse período manteve uma presença inquietante na atenção e na memória de muitos leitores.

Presença reforçada agora com as matérias de capa feitas pelo periódico Cândido (mês de maio 2017), da Biblioteca Pública do Paraná. Mar Paraguayo é um volume de menos de 100 páginas, e sua curiosidade principal é o multidioma em que foi escrito.

O livro tem, misturadamente, trechos em português, espanhol, guarani e um meta-portunhol que a rigor não pertence a nenhuma dessas três “línguas de verdade”, cujas ortografias e gramáticas foram juntas pro espaço. A prosa do autor transita pelas três línguas sem pagar pedágio a nenhuma.

Tive um breve contato com Wilson Bueno quando ele editava a revista literária Nicolau em Curitiba e publicou um texto meu (no. 26, 1989). O lançamento deste livro, alguns anos depois, foi comentado na imprensa com a surpresa inevitável diante de um livro de idioma não apenas misto, mas “bárbaro”, e as comparações inevitáveis com o também curitibano e “bárbaro” Catatau (1975) de Paulo Leminski.

Mar Paraguayo é basicamente o monólogo de uma mulher que se defende de uma possível acusação de assassinato pela morte de um “velho” com quem ela vivia. Um “viejo” lúbrico mas impotente:

(...) el sexo de total impossibilidad. El deseo en el contudo segue existindo como una pierna amputada que prosseguisse coçando. (p. 20)

Um bordão recorrente do livro é a afirmação de que “eu não matei el viejo”, embora ela confesse o tempo todo que o traía e que era apaixonada por “el niño”, um rapaz mais jovem e atlético que lhe faz uma caridade de vez em quando e por quem ela é arriada dos quatro pneus.

...hay que devorarlo a el siempre imprevisto: dibujado en la tanga su sexo ostensivo: mas sobretodo los ojos verdes contra la cara de risa y sol: lo tórax en los embates del viento y del lamiento: a bailar en la siesta: sueño: soy su araña: álgebra: pronta jibóia: toda me enlambe su língua destra: todo lo unto de cuspo y baba: humores: suores: los miasmas: espasmos: la siesta me pone abrasado el útero profundo: (...) (p. 47)

E este recurso do “dois pontos”, usado com frequência ao longo do texto, transforma-o num trajeto sem fim de corredores que desembocam em corredores, ou frases completas que veem brotar de dentro de si frases maiores, como bonecas russas às avessas. É um recurso de pontuação ainda mais vertiginoso do que a mera vírgula das enumerações comuns.

A narradora sem nome vive com o “viejo” no balneário de Guaratuba, por onde “el niño” desfila seu físico de surfista, e ela, sabendo-se suspeita da morte do velho, desfila seu rosário de explicações que tanto a justificam quanto mais a incriminam.

Ela se confessa velha, feia, gorda, mas indomável:

“madona macunaíma” (p. 66), “puritana putana” (p. 60)

...pero nunca que abandoné mis vicios necessários e insubstituíbles en troca de estas cosas desatinadas de la estetica y del capricho. (p. 65)

O ciúme do rapaz a corrói por dentro quando ela pragueja contra as bonitinhas da praia:

...casi impossible debujar lo que sea su boca entranhada en la boca de esta chica ordinária, que se va en vano por las playas, que exibe sus tangas ecandalosas y de resto vulgares, ai que ya deseo mi madre, ai que es intransponível viver, casi imposible debujar como su piel que es mi piel toda se eriçe por esta niña sin imaginación o personalidad que es apenas un cuerpo-de-miss y nada más. (p. 52)

O velho a sustentou por um tempo, foi seu arrimo, depois virou um peso, e não há leitor que duvide que ela teria sido capaz, sim, de dar cabo dele, nem que fosse para ficar

...en nesta casa que la muerte del viejo me legô – assim como uno triunfo desnecessário. Lo mismo lo digo de nuestra conjunta corriente conta en el Banestado – en todo sentido, fundamental. (p. 51)

O que a narradora-confessional consegue, no entanto, é redimir-se e transcender-se via linguagem, porque sua prosa impura, ou “impúrpura” (como diria Chico César) é de um furor poetizante que bota abaixo as regras e se impõe pela mera força do desejo verbalizador:

Ah, mi felicidad es un cristal ante el sol, advinadora esfera cargada por el futuro como una bomba que se va a explodir en los urânios del dia. (p. 15)

Que terror puede ser la beleza! (p. 26)

El susto es el agudo espectro del pânico, una cosa asi como se fuera su íntimo fantasma, una cosa cerca de lo ante-ante-escabroso, el ante de los antes de antes. Los ancestrales y los mayores. (p. 31)

Com certas “banguelas” ladeira abaixo num torvelinho verbal vertiginoso onde não se sabe mais o que é memória, o que é léxico, o que é invenção:

...como um juego-de-jugar: pimpirrota, piribela floral, loculho sierva, cincinati, abrolhos, carmencinda, madressilva, pirilampos, antanas bástistas, casamarilla, locos complutos, boludo lorgo, lacalhe-seda, amarelinhas, esconde-atrás, noclins ereiras, marcha adelante, los cantantes juegos de rueda, teresinas-de-jesus, las teresinas, entraçada gaucha, guapa glauchas, catatéicos, constreros, filíciquis, rosaes, oscuro mistério de fábula original, las tranças, las troupas, helicáreos rans, duncans, vitrinas, duendes, vagaus, pilvos conscentes, broquílides silfos, lunfens de lérias, lunfens vivaces, como um juego-de-jugar (...) (p. 35)

(...) la fala ancestral de padres y avuêlos que se van de infinito a la memoria (p. 42)

A marafona do balneário é uma dessas entidades narradoras sem físico, só voz, cujo corpo invisível vai sendo tornado concreto pela voz com que fala, como o do narrador do clássico “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa (1961; em livro, 1969), que é outra narração em português malassombrada por indigenismos em borbotão.

Experiência rara de prosa poética multilíngue, o livro e o seu autor são comentados no Cândido em artigos de Márcio Renato dos Santos e Luiz Manfredini, revelando a fortuna crítica que se amplia aos poucos ao seu redor, em estudos de Antonio R. Esteves, Douglas Diegues, Sérgio Medeiros, Carlos Henrique Schroeder e outros. Além das traduções do livro na Argentina, México, Chile e EUA.

No sê, solamente lo que miro al derredor es esto lento abismar-se del sol en el mar, suprema rueda de fuego y metal a la manera de una herida abierta en los pentimientos del cielo. (p. 50)

Que es el amor? Una solitária rosa en el desierto? Ô el simples sentimiento odioso de que es impossible, de que es impossible uno vivir sin que caiga y se levante, sin que levante-se y se caiga de nuevo, recorriente... (p. 53)

...ô ya sea mordida por el escorpión vivo de la autêntica felicidad. (p. 52)