sábado, 30 de setembro de 2017

4273) Ariano Suassuna e o cinema (30.9.2017)




(The Ape, 1940)

Quando Ariano Suassuna era menino, morou durante alguns meses em Campina Grande. A mãe dele, viúva, teve que passar um tempo lá para ajudar uma prima que estava doente, algo desse tipo. E lá vai Ariano, um dos filhos mais novos, morar com ela, e estudar no Colégio Alfredo Dantas, que era do Tenente Alfredo, um parente deles pelo lado materno.


(antiga fachada do Colégio Alfredo Dantas)

Isso foi logo após a inauguração do Cine Capitólio, que se deu em 1934, com o filme Cavadoras de Ouro  (“The Gold Diggers”), um dos títulos de uma série de musicais da década de 1930. Acho que era esse o filme que Ariano comentava ter visto:

– Era um filme besta danado, uma porção de mulheres abrindo caixas de chapéus e experimentando os chapéus, ô negócio mais sem graça!


(Cavadoras de Ouro)

A história mais interessante, porém, era a que ele contava de quando uma das suas tias de Campina o levou para ver um filme de terror, que eu depois identifiquei como sendo The Ape (1940), com Boris Karloff. Segundo Ariano, era a história de um cientista louco que se vestia numa pele de gorila e saía de noite pela cidade, cometendo crimes.

Acontece que a tia de Ariano era uma senhora pouco acostumada ao cinema e ia só para fazer gosto ao sobrinho-visitante. Ela tinha um raciocínio – digamos – um pouco lento para acompanhar a história, e de vez em quando fazia comentários ou perguntas que provocavam o riso nas pessoas das cadeiras próximas, e Ariano, menino, morria de vergonha, ficando com vontade de se enfiar embaixo dos assentos.


(The Ape, 1940)

Perto do fim do filme, o cientista, disfarçado de gorila, teve a luta final contra a polícia, ou algo assim, foi alvejado e caiu morto. E nesse momento acontece a clássica cena da re-transformação (comum em filmes de lobisomens e em histórias como “O homem invisível”, “O médico e o monstro”, etc.), quando após a morte o monstro revela sua identidade humana.

Os policiais examinaram o gorila caído e, rasgando a roupa de pele, viram Boris Karloff lá dentro. Um silêncio enorme pairou no Cine Capitólio e no meio do silêncio a voz excitada da tia de Ariano, que enfim entendera a história:

– Eita, Ariano!  Entendi!  O urso tinha comido o doutor!

O cinema veio abaixo e Ariano quis desaparecer.


(Vida e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Ferdinand Zecca, 1905)

Essa história me lembra outra, que se contava lá em casa. Antigamente, durante a Semana Santa era costume dos cinemas exibir uma versão bem antiga do filme A Paixão de Cristo: um filme mudo, sempre em cópia bem estragada, com aquele movimento aceleradozinho. E o pessoal católico ia assistir todos os anos o mesmíssimo filme.

(Que ainda não sei se era o filme de Ferdinand Zecca de 1905 ou o de Cecil B. De Mille de 1927).

Aí... Hollywood produz O Rei dos Reis (1961), um filme em Technicolor, de Nicholas Ray, com Jeffrey Hunter – lourinho, bonitinho, de olhos azuis – no papel de Cristo.

Uma beata que morava nas redondezas foi ao cinema, como ia todos os anos, e voltou para casa pegando ar.

– Isso é um desaforo!  A gente vai no cinema pra ver a paixão de Nosso Senhor e eles botam um filme colorido com um artista americano!!!

– Mas tia, e que filme a senhora queria ver?

– Eu queria aquele outro que tem todo ano, o antigo, o que foi feito com Jesus Cristo de verdade!

Ela pensava que A Paixão de Cristo era um documentário filmado no ano 33 da Era Cristã.

Essas histórias são engraçadas por que mostram o caráter alucinatório que o cinema sempre teve para as populações mais simples, principalmente em suas primeiras décadas de existência. Os espectadores estavam diante de várias coisas ao mesmo tempo: uma cerimônia coletiva (centenas de pessoas) numa sala escura, contemplando uma coisa luminosa, impressionante e gigantesca – e que não entendiam por completo.

E mais do que isso: sendo forçadas a fazer sentido de uma sucessão de imagens cuja gramática e sintaxe elas levavam talvez anos para aprender.

Me lembro de ter lido um comentário de um jornalista, nas primeiras décadas do século 20, dizendo mais ou menos assim: “O filme é incompreensível. Vemos um casal sentado a uma mesa, conversando, de repente aparece a cabeça de um gigante, e em seguida vemos o casal de novo, bem tranquilo, aparentemente sem perceber nada.”  O gigante era o rosto do ator em close-up.

Isso era ainda mais notável quando sabemos que a imagem cinematográfica, em suas primeiras décadas, era muito mais sujeita do que hoje a desfoques, trepidações, manchas, má projeção, películas arranhadas ou mofadas, telas de má qualidade.

Focalizar aquelas imagens, identificá-las, fazer a conexão entre elas... isso era um trabalho insano, para mentes de garotos ou mesmo de adultos cujos cérebros jamais tinham sido submetidos a uma tal montanha-russa imagética. (Comparados ao cinema, o teatro e a ópera eram um oásis de continuidade e foco.)

Em As Palavras (“Les Mots”, 1963), Jean-Paul Sartre lembra com carinho essa fase psicodélica, alucinógena de sua infância nos cinemas parisienses repletos (tradução de J. Guinsburg):

Eu raspava minhas costas em joelhos, sentava-me num assento rangente, minha mãe introduzia uma coberta dobrada sob minhas nádegas a fim de me alçar; por fim eu olhava a tela, descobria um giz fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada. Eu amava esta chuva, esta inquietação sem repouso que trabalhava a muralha. (...) Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais de perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte pertencia a mim, como a todos. Éramos da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze, e não sabia falar.

Sartre usa aí de uma certa licença poética, porque o cinema era na verdade dez anos mais velho do que ele.