sexta-feira, 14 de julho de 2017

4252) "O bigode" de Emmanuel Carrère (14.7.2017)



Há um subgênero literário que não tem nome, mas o nome seria “Histórias De Alteração Brusca Da Realidade Por Causa De Um Ínfimo Detalhe”.

É o caso deste curto romance ou novela de Emmanuel Carrère, O bigode (“Le Moustache”, 1986; Companhia das Letras, 2011, trad. André Telles).

A história começa com o narrador, durante o banho, tendo o impulso de raspar o bigode que usa há anos. Pergunta à esposa o que ela acha, ela responde da sala que pode ficar legal; ele raspa o bigode. Enquanto isto, a esposa dá um pulo lá embaixo para resolver alguma coisa.

O problema é que, na volta, ela não faz nenhum comentário sobre o rosto raspado. O marido fica, com a cara boboca de todo marido, esperando a opinião dela, e nada. É como se nada tivesse mudado na cara dele.

Daí em diante é como se o tecido do espaço-tempo tivesse se rasgado (como dizem os autores de ficção científica) e nunca mais pudesse ser recomposto. Ninguém comenta a cra nova, ninguém se lembra de que ele já teve bigode. Quanto mais ele recorre a comprovações externas de sua antiga bigodice (testemunho de amigos, fotos, etc.) mais encontra provas de que nunca teve bigode.

A alusão à FC não é gratuita; Carrère é autor de um livro sobre Philip K. Dick (que não li ainda), e o universo de PKD é um desses em que basta um detalhezinho não “bater” para que o personagem se veja num mundo paralelo. O mundo está sempre por um triz.

Há num livro dele o exemplo famoso de um cara cujo universo desmorona porque ele entra no banheiro de sua casa, às escuras, procura o fio pendurado com a “pera” do interruptor de luz, não acha, e descobre depois que no seu banheiro isso nunca existiu – o interruptor é embutido na parede, sempre foi.  E agora?

“Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, disse Gilberto Gil, referindo-se à fragilidade da vida. (Qual de nós tem 100% de certeza de que estará vivo daqui a uma hora?)  No presente caso, não se trata de um instantezinho do tempo, mas de um objetozinho no espaço. O mundo é normal, rotineiro, seguro. Aí um dia você pensa: "Vou tirar aquele quadro da parede”. Tira, e o mundo começa a desmoronar, e nem botando o quadro de volta a gente é capaz de consertar o estrago.

Pode-se pensar no protagonista de História do Cerco de Lisboa (1989) de José Saramago: ao revisar as provas de um livro de História ele inclui a palavra “não” numa frase, fazendo com que os Cruzados NÃO tivessem vindo em socorro do rei português contra os mouros. Com o livro afirmando isto, a História muda. (Não li o romance – estou me baseando numa sinopse.)

Faz lembrar também, num nível mais metalinguístico, O Sumiço (“La Disparition”) de Georges Perec – um mundo onde desaparece um personagem que simboliza a letra E, e todo o resto desse mundo tem que se reorganizar, tapando os buracos deixados pela ausência dessa letra.

A angústia do personagem de O bigode é, em primeiro lugar, por achar que a mulher ficou doida e que conseguiu criar uma gigantesca conspiração paranóica para convencê-lo de que ele nunca teve bigode. Em segundo lugar, ele começa a perceber que talvez seja ele quem está ficando doido – e sua vida desmorona, sim, catastroficamente, transformando-o num pária em terra estrangeira.

É uma história que parte do cotidiano mais besta para o absurdo mais inquietante, como certas narrativas de David Lynch em que os personagens tomam atitudes irreparáveis e desnecessárias. Fazem isso movidos por algo que não sabemos, porque vemos apenas a fixidez dos seus olhos e a autodestruição desnecessária que executam como resignados robôs.

De Carrère eu só tinha lido O Adversário, a história de um cara que dá um golpe financeiro “na moita” durante anos e acaba assassinando a família inteira quando percebe que vai ser desmascarado. Tem em comum com O bigode essa aparente placidez de uma existenciazinha pequeno-burguesa e francófona, toda nos conformes, que um belo dia desmorona sem que ninguém (a família num caso, o protagonista no outro) esperasse por aquilo.


É num certo sentido uma história fantástica, porque mesmo admitindo que o personagem seja (ou tenha ficado) louco certas “quebras” da realidade parecem indicar mesmo uma ruptura philipkdickiana com o Real. A diferença é mais uma questão de estilo. Tanto o protagonista de O Bigode quanto os de Dick se interrogam constantamente, sem parar, sobre a natureza da realidade, reavaliam e reinterpretam o tempo todo o que lhes acontece. Mas em Carrère isso se dá num contexto organizadíssimo, cartesiano, sem as fraturas de pensamento e de estrutura que Dick exibe em livros como Valis. O livro de Carrère, alucinatório e apolíneo, parece um bilhete de suicida escrito numa caligrafia impecável.