quinta-feira, 6 de julho de 2017

4250) João Saldanha, 100 anos (6.7.2017)



Neste mês de julho comemora-se o centenário de nascimento de João Saldanha, jornalista, técnico do Botafogo no tempo em que o Botafogo era um dos melhores times do mundo, técnico da Seleção Brasileira. 

Um personagem fascinante, que comecei a admirar ainda garoto, lendo suas crônicas na imprensa, e depois lendo o excelente Os Subterrâneos do Futebol, relato de sua vivência botafoguense, cheio de episódios pitorescos, mostrando como é o futebol fora de campo.

Saldanha foi um dos caras mais politicamente incorretos do seu tempo, não porque fosse pior do que os outros, mas porque era o único que dizia o que pensava, sem se importar com o que alguém achasse. 

O meio do futebol profissional é todo cheio de dedos, cheio de pose, de discurso patriarcal moralista, quando diante do microfone. Som desligado, ninguém distingue um jornalista de um cartola. João Saldanha rasgava, falava tudo, e por isso ficou com fama de pior do que os outros, quando era apenas mais verdadeiro.

Em alguma prateleira empoeirada, no sambaqui de papel em cujo centro habito, devo ter ainda uma esfarelada pasta de plástico com dezenas de recortes de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, que eu lia com o vagar e a aplicação de quem está estudando para um mestrado.

Acho que ele e Paulo Francis foram os únicos cronistas de quem guardei recortes. Não por achar aquilo um documento histórico, mas para reler de vez em quando e não me esquecer de como se escreve. Se não fosse pela leitura imunizadora dos dois, eu já poderia estar em alguma Academia.

Vi-o em carne e osso apenas uma vez, numa palestra dele na Facha (Faculdade Hélio Alonso), no Rio. Alertado por algum amigo, fui lá na faculdade (era perto de casa) num começo de noite e vi João perorando para 50 ou 60 universitários durante mais de duas horas.

Era um falador incansável, inesgotável e brilhante, da estirpe de Darcy Ribeiro e Ariano Suassuna. Não tinha nhém-nhém-nhém, ia direto ao ponto, mandava uma idéia forte, concreta e inquietante, e em vez de ficar tagarelando em volta dela produzia logo outra; e outra; e mais outra.

Inquieto, desassossegado, teimoso, dos que não abrem nem prum trem. Articulado, hábil com a linguagem, criativo, sem paciência para com a retórica vazia e a pomposidade de tantos técnicos de futebol, de tantos cronistas. Sorria pouco, mas transmitia uma impressionante energia de viver. (“Alegria de viver” me parece um termo besteirolzinho demais, perto da impressão que ele causava.)

No ambiente futebolístico carioca, João mantém uma curiosa relação folclórica com Neném Prancha, figura ligada ao Botafogo e a quem se atribui uma quantidade enorme de frases notáveis. Algumas delas, diz-se, eram na verdade de Saldanha. 

Neném Prancha (tinha esse nome por causa dos pés enormes) foi o cara que dizia: “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano só terminava empatado”, “Pênalte é tão importante que devia ser batido pelo presidente do clube” e outras preciosidades.

Sendo Neném um personagem típico como Seu Lunga ou Zé Limeira, acabaram lhe atribuindo coisas que ele provavelmente nunca disse. Não importa: vale o que foi falado. Quem fica é a frase, a gente pede a conta e vai embora.

Tenho visto algumas notas na imprensa a respeito do centenário de Saldanha, e parece que estão saindo algumas coletâneas de suas crônicas. Uma dessas coletâneas é As 100 melhores crônicas – comentadas – de João Saldanha, de Alexandre Mesquita, César Oliveira e Marcelo Guimarães (LivrosDeFutebol, 2017).

Preciso reler, porque nas épocas mais recentes tenho recorrido, naqueles momentos em que a cabeça está a zero e o texto avança com a velocidade da hera na treliça, de um cacoete em que beletristas pátrios são useiros e vezeiros, esses floreios caligráficos de uma prosa ornamental que consiste em esticar na máxima medida possível uma idéia bem curtinha e bordá-la toda de lantejoulas verbais e miçangas metafóricas com o intuito de disfarçar seu vazio mais vazio do que um estômago vazio.

Vamos lembrar de João. Vida que segue.