quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

4203) O cantador João Paraibano (26.1.2017)



Estou por aqui, me entretendo com a leitura vagarosa de João Paraibano, o Herdeiro dos Astros (Teresina: Gráfica e Editora Halley, 2016), coletânea de versos e de depoimentos organizada por Ésio Rafael, Marcos Passos e Santanna O Cantador, em homenagem ao grande repentista, amigo de todos nós, falecido em 2014.

Conheci João Paraibano por ocasião do II Congresso Nacional de Violeiros de Campina Grande, em 1975, quando ele cantou duplado com um dos seus parceiros mais constantes, Sebastião Dias. Naquele Olimpo de repentistas no auge da arrancada para o sucesso, e que eu estava encontrando pela primeira vez, João não se destacava. Era tranquilo, baixinho, meio tímido, ainda mais jovem do que eu, e ficava em segundo plano diante de presenças mais vigorosas.

Foi somente com o passar dos anos, a repetição dos Congressos, e as noitadas em pé-de-parede que se prolongavam após as disputas, que pude vê-lo cantar mais solto, mais confiante, agigantando-se por trás da viola, ficando do tamanho dos versos que fazia.

No mundo dos cantadores existem várias divisões informais, tipo “os que são isso, os que são aquilo”. Uma dessas divisões é: “Os que cantam leitura, e os que cantam sentimento”. (Claro que qualquer bom repentista canta as duas coisas; essa divisão aponta apenas a ênfase de cada um.) João era um cantador de sentimento, de observação da natureza, de conhecimento das minúcias da vida no sertão, da compreensão psicológica das atitudes do homem, da mulher e da criança sertaneja.

O livro organizado pelos três poetas faz uma recolha valiosa de grandes improvisos, grandes glosas e episódios pessoais, além de uma série de testemunhos de amigos e parentes.  João está inteiro ali, mesmo descontando-se a tendência sertaneja para a hipérbole sentimental.

Meu parceiro Cavani Rosas, que naqueles idos de 1975 morava em Campina Grande e acompanhava os congressos de cantadores, fez a capa e as belas ilustrações a bico-de-pena do livro, que traz ainda um “porta retratos” de fotos de João, sua família, suas cantorias.

Muitos versos de João, para mim, surgem naquele território poético da observação da natureza e da paisagem humana, dos costumes, dos pequenos gestos das pessoas. Um simples registro, um flash, mas numa concentração poética semelhante à do haikai japonês, capaz de em três linhas evocar uma paisagem física, uma estação do ano, um momento de introspecção e meditação por parte do poeta que observa.

Alguns versos de João Paraibano:

Ainda lembro do cheiro
que minha mãe dava n’eu
da cor da primeira nota
que meu padrinho me deu
eu não peguei com vergonha
papai foi quem recebeu. (pág. 120)
Veja-se a delicadeza psicológica desse verso: o carinho materno misturado à lembrança de um momento em que o menino é admitido no mundo adulto dos homens, onde circula o dinheiro. E o fato do menino lembrar a cor da nota, não o valor. E a fluência dessas duas expressões tão nordestinas: “cheiro”, “com vergonha” (=encabulado, constrangido).

Quem vive numa prisão
leva a vida no desprezo
pede uma esmola a quem passa
nas mãos um cigarro aceso
pernas do lado de fora
e o resto do corpo preso. (pág. 98)
Aqui é a observação do comportamento social. Em Campina Grande eu já morei vizinho à Casa de Detenção (no apartamento que minha tia Adiza tinha na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Esta é uma foto precisa de como os presos passavam o dia: sentados no peitoril da janela gradeada, com as pernas para fora, e tirando onda, por cima do muro, com quem passava na calçada.

Fiz capitão na bacia
de feijão verde e farinha
quando o angu tava feito
mãe saía da cozinha
subia em cima da cerca
dava um grito e papai vinha. (pág. 49)
“Capitão” é o que na minha casa chamavam de “raposa”: feijão e farinha amassados juntos na mão, formando um bolo compacto para ser comido com a mão mesmo. E esse detalhe da mãe subindo na cerca para gritar pro marido (no roçado) que o almoço está pronto só me lembra uma cena de filme de Kurosawa ou de Andrei Tarkovsky.

Ao passar em Afogados
diga a minha esposa bela
que derramei duas lágrimas
sentindo saudades dela
tive sede, bebi uma
e a outra guardei pra ela. (pág. 54)
Aqui vale mais uma vez a delicadeza da imagem, a lágrima guardada para a mulher querida, como algo minúsculo e precioso. 

Meu passado foi assim
comendo juá banido
o vento dando empurrão
no lençol velho estendido
com tanta velocidade
que mudava a qualidade
que a tinta dava ao tecido. (pág. 123)
“Banido”, em nordestinense, é “estragado” – juá é tipicamente uma frutinha que se esparrama com exagero pelo chão, e as crianças acabam comendo qualquer um. A impressão visual da imagem do lençol sacudido pelo vento é o que Ezra Pound chamava de “fanopéia”, a evocação vívida, com palavras, de uma impressão visual. É uma variante e um enriquecimento do famoso verso de Manuel Xudu sobre o pião “que roda na ponteira / com tanta velocidade / que muda a cor da madeira”.

Vou pro meu sertão antigo
pra ver tapera sem centro
ver minha mãe na cozinha
cortando cebola e coentro
botando um prato no pote
pra não cair mosca dentro. (pág. 70)
Numa sextilha de rimas limitadas (“...entro”), o poeta retrata com simplicidade a cozinha de casa de sítio, o pote de barro com água num recanto. Geralmente coberto com uma tábua ou bandeja, com copos emborcados em cima; mas João enriquece a imagem ao supor um pote sem tampa que a mulher cobre mesmo assim com um prato qualquer.

Toda noite quando deito
um pesadelo me abraça
meu cabelo que era preto
está da cor da fumaça
ficou branco após os trinta
eu não quis gastar com tinta
o tempo pintou de graça. (pág. 124)
Aqui, vale a naturalidade com que “tinta” é rimado com “trinta”, e o tom grisalho (olha a fanopéia) é sugerido pela “cor de fumaça” em contraste com o “preto”. O verso bom é o verso simples em que tudo parece inevitável, parece que aquelas palavras sempre andaram umas junto das outras, e mesmo assim se conjugam de repente para produzir uma imagem pequena, mas nítida, concisa, memorável.