quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

4199) Romances emprestados (12.1.2017)




Alguns escritores afirmam que as idéias caem do céu sobre a sua cabeça como cocô de pombo. O cara sai de casa para ir na papelaria da esquina a fim de comprar um cartucho de tinta 92 preto, e de repente sente alguma coisa quente a lhe escorrer pelo cérebro. É um conto policial pronto, protinho, saído do forno, desencadeado pela visão de um grupinho de pessoas conversando diante de um prédio enquanto um deles toca a campainha.

Por esses mecanismos inexplicáveis, ele percebe (não “imagina”; ele sabe, com a convicção dos verdadeiros ficcionistas) que aquele velhote é Fulano que tem tais ou quais objetivos inconfessáveis, aquela mocinha é Sicrana que está entrando de gaiata numa conspiração alheia, aquele senhor de terno é Beltrano que pensa estar dando um golpe mas também é vítima, aquela menina emburrada de óculos será a narradora de tudo, quando na velhice vier a entender de fato o que se passou.

Assim nascem muitos contos: como uma configuação casual que se cristaliza quando a imaginação malévola (mas em últimos termos inofensiva) de um escritor projeta sobre gente de verdade seus sonhos ou pesadelos de mentira.

Julio Cortázar comentou certa vez que a coisa que mais lhe ocorria em coquetéis ou reuniões sociais era alguém se aproximar dele e dizer algo na linha de:

-- Bem, já que você é escritor, escuta esse fato que se deu comigo, tenho certeza de que você vai fazer dele um conto sensacional.

O longilíneo Julio garante que nunca um conto lhe brotou depois de um ameaço dessa natureza, mas, em compensação, um papo casual entre algumas senhoras, entreouvido sem compromisso, lhe inspirou “Los buenos servicios”, um dos contos mais tocantes do livro Las Armas Secretas (1959) – a história de uma criada, uma mulher simples, que é contratada para fazer o papel da mãe de alguém desconhecido durante um velório.



Histórias emprestadas podem se transformar em grandes livros quando pousam no ouvido certo. Reza a lenda que o argentino Manuel Puig (o autor de O Beijo da Mulher Aranha e outros belos romances), quando morava no Rio de Janeiro, precisou fazer uma obra qualquer em sua casa e mandou vir um pedreiro. O pedreiro passava o dia trabalhando e conversando, e de seu monólogo autobiográfico Puig extraiu seu romance Sangue de amor correspondido (1982) – exercendo, sem dúvida, seu privilégio autoral de inventar quando lhe convinha.

Um dos clássicos da literatura brasileira, Memórias de um Sargento de Milícias (1852-53) foi publicado pelo seu autor, Manuel Antonio de Almeida, sob o pseudônimo de “Um Brasileiro”. Li em alguma parte – quem conhecer melhor a história que me ajude – que Almeida teve um certo pudor em se assinar como autor do romance (que saiu em folhetins nas páginas do suplemento “A Pacotilha”, do Correio Mercantil) porque toda a história lhe tinha sido passada verbalmente pelo sargento citado no título, e ele não fez mais do que registrá-la por escrito e publicá-la.



A prática do jornalismo é um dos principais canais deste veio da literatura em que a história narrada oralmente por A se transforma no romance escrito por B. No Rio de Janeiro contemporâneo os romances de Julio Ludemir sobre personagens obscuros do crime organizado têm também como base essas histórias de vida recriadas por escrito: No Coração do Comando (Ed. Record, 2002), Lembrancinha do Adeus (Ed. Planeta, 2004) e outros.




“Romance emprestado” talvez não seja o nome mais adequado para essa vertente, porque romance é o resultado final, e o que o primeiro narrador empresta é apenas o argumento errático, episódico, fragmentado, que serve de base ao trabalho estrutural e formal realizado pelo escritor. Mas não há dúvida de que quando não somos capazes, naquele momento, de conceber uma grande história, podemos pelo menos estar atento às histórias que o mundo coloca de bandeja no colo da gente.