terça-feira, 19 de dezembro de 2017

4297) Tolkien e os rios da Terra Média (19.12.2017)





Um dos encantos que fascinaram os primeiros leitores da trilogia O Senhor dos Anéis (1954-55) de J. R. R. Tolkien foi a impressão de realidade intensa produzido por um livro que era claramente de fantasia, que transcorria num mundo sem nenhum país reconhecível, nenhuma cultura reconhecível, mas que era intensamente real, verossímil, mesmo quando estava descrevendo cenas com seres fantásticos e forças sobrenaturais.

Já se disse que o livro de Tolkien foi um dos primeiros em que um leitor sentia o quanto custa fazer longas viagens a pé. Os personagens passavam longos capítulos para ir de um lugar a outro, numa época literária em que esse nó-górdio era cortado com fórmulas mágicas tipo: “Depois de alguns dias de extenuante caminhada, nossos heróis viram-se finalmente à beira do Rio Aligátores...”

A textura de uma roupa, a profusão de odores numa estalagem, a sensação de estar amarrado há horas e cheio de cãibras, tudo isso eram pontos positivos na criação de uma narrativa fisicamente verossímil.

E quando focalizávamos a atenção no chamado ambiente-macro, a impressão se mantinha. Aqueles personagens não eram ciscos de poeira boiando no ar. Pertenciam a famílias longuíssimas onde todo mundo tinha nome e datas, serviam a reis cujas dinastias eram descritas com minúcias ao longo de séculos. Era um mundo onde todo mundo existia de verdade, com testemunhas.

Invoco todas estas qualidades do texto de Tolkien para introduzir uma divertida crítica feita por Alex Acks (geólogo e escritor) a respeito dos rios e das montanhas da Terra Média, “Middle Earth”.

Num artigo reproduzido pelo saite da editora Tor Books, Acks faz uma série de críticas ao modo como os rios parecem se comportar na paisagem da Terra Média tolkieniana. Não vou transcrever aqui a argumentação dele, cuja íntegra pode ser lida no link original:


Basicamente, Alex diz que apesar de ser um admirador da obra de Tolkien, ele considera que os mapas incluídos nela são “os mapas mal-feitos de fantasia que deram origem a milhares de mapas mal-feitos de fantasia”. Esses mapas se tornaram um “bônus” quase obrigatório do gênero, tal como as plantas-baixas da casa onde ocorreu o crime o foram para a literatura detetivesca dos anos 1930-1950.

Diz Alex que o curso do Anduin, o principal rio, é “incompreensível”, devido a vários fatores. Um deles é o fato de que quando um rio entra em rota de colisão com uma cadeia de montanhas (um local onde o terreno “sobe”, por definição) isso tem algo de estranho. Ele faz algumas ressalvas (talvez o rio já existisse, e as montanhas tenham se erguido muito tempo depois, por uma convulsão geológica qualquer), e segue adiante.

Ele observa que o Anduin não parece ter grandes afluentes visíveis, e que os rios em volta, em vez de correram na direção dele, parecem ir cada qual numa direção diferente, o que sugere uma topografia  de relevos pouco realistas. A direção de um rio indica que existe ali uma baixa, pois a água tende a se escoar sempre para os lugares mais baixos. E essa direção dele tem que estar de acordo com as outras figuras de relevo em volta.

O que uma crítica desta natureza nos diz sobre o talento literário de Tolkien?

Várias coisas, e nenhuma delas muito grave. Tolkien era meio filólogo, meio medievalista. Era professor em Oxford, o que já é meio caminho andado para a especialização do conhecimento. O cara tende a ser um esgotador-de-um-só-assunto, e não um comparador-transversal-de-disciplinas.  É mais que compreensível que ele entendesse pouco de geologia. Todo escritor acaba errando, quando usa dados de fora de suas áreas de conhecimento. Os erros hidrográficos de JRRT não me parecem graves; pelo menos, foi a primeira vez que vi alguém falar a respeito.

Tolkien fazia uma espécie de hard fantasy, ou seja, uma fantasia que mesmo admitindo elementos sobrenaturais busca uma coerência interna, uma lógica, um compromisso de rigor. A verossimilhança de um elemento fantástico é maior quando o leitor percebe que existem regras, existe um quadro geral de forças e pressões no qual esse elemento tem que se encaixar.

Numa carta ao seu filho Christopher, em 25 de abril de 1944, quando trabalhava no Livro IV, ele diz:

Dei uma aula medíocre, depois encontrei por meia hora os Lewises [provavelmente C.S. Lewis e seu irmão] e C.W. [provavelmente Charles Williams].  Aparei três gramados, escrevi uma carta a John [o outro filho de Tolkien], e lutei com uma passagem problemática em The Ring. A esta altura, eu tenho de descobrir quanto tempo mais tarde a lua se eleva a cada noite, quando está próxima de ficar cheia; e como preparar um guisado de coelho!

Se Tolkien desconhecia os detalhes da dinâmica dos fluxos hidrográficos, ou sei lá como se chama isso, não era por burrice ou negligência, era por falta de tempo mesmo. Se pudesse, ele estaria consertando e aperfeiçoando essas coisas até hoje. Ele era desse tipo.

Os possíveis erros não influem no desenvolvimento do enredo e, principalmente, não são aqueles erros que empurram o enredo para um beco sem saída e que o autor, percebendo tarde demais, resolve mediante um deus ex machina qualquer.

Tolkien parecia ver um mapa (e assim agem muitos dos autores que o seguem) como um quadro, uma obra de arte, um retrato idealizado de uma paisagem, destinado apenas a sugerir vagamente a posição relativa dos elementos, e uma distância aproximada. (Como os mapas de metrô, p. ex.) Ali, como numa “carta enigmática”, cada elemento pictórico corresponde a uma feição do mundo exterior, mas num sentido meramente ilustrativo.

Um mapa físico, no entanto é mais do que isto: mesmo estático, ele indica a posição atual de um processo dinâmico, algo que envolve placas tectônicas, secas, alagamentos, erosão. É um caso de “a foto da nuvem”, só que uma nuvem muitíssimo mais lenta, que não muda no curso de minutos, e sim de milênios.

Existe forçosamente uma sintaxe interna entre os elementos representados num mapa científico. Isto modifica aquilo. Isto é consequência daquilo. Isto e aquilo são consequências distintas de um fenômeno que já passou.

É neste aspecto que a notável mente analítica de Tolkien, durante a criação da obra, cedeu espaço a sua não-menos-notável mente imaginativa, e seu mapa se tornou uma peça de arte gráfica, um híbrido, a meio caminho entre a descrição de fenômenos físicos e a pictografia armorial.







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