domingo, 30 de julho de 2017

4256) Chico Buarque: "Tua Cantiga" (30.7.2017)





Chico Buarque está prometendo disco novo para breve, e lançou uma canção como trailer, “Tua Cantiga”, em parceria com Cristóvão Bastos. O clipe pode ser visto aqui – ou revisto, porque a esta altura grande parte dos meus leitores já viu.


Chico, com seus companheiros de geração como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Edu Lobo, Egberto Gismonti, e tantos outros da MPB, é protagonista de uma espécie de seriado “The Walking Dead”. Cada um deles é enterrado publicamente todo ano pela crítica ou pela concorrência –  e não morre nunca. Em cada geração nova de músicos rebeldes e contestadores aparece um que o mata e enterra, e seis meses depois ele faz um disco e canta na missa-de-sétimo-dia desses talentos meteóricos.

Esta música nova tem uma bela melodia de Cristóvão Bastos, um arranjo delicado onde cada ruidozinho sabe o que está fazendo (arranjo e piano: Cristóvão Bastos; baixo, Jorge Helder; bateria e percussão: Jurim Moreira), e um clip simpático onde o camarada vem entrando e trazendo a câmera consigo, canta a música, sai pela outra porta, vai embora e deixa a câmera para trás.

É como se ele estivesse bebendo cerveja num bar nas vizinhanças, alguém mandasse um zap dizendo: “Prontos pra gravar, pode vir”, ele viesse, gravasse e fosse embora antes que a cerveja amornasse na mesa.

Não sou fã de Chico Buarque. Se fosse, teria escutado os dois ou três últimos discos dele – coisa que não fiz. Por que? Não sei, acho que com música acontece algo parecido com o que se dá com bebida. A gente vai numa loja e compra um vinho, ou uma vodka, chega em casa e guarda no móvel da sala. Um leigo perguntaria: “Oi, e não vai beber não?” A resposta seria: “Vou, quando a hora chegar”.

“Tua Cantiga” tem sido comentado de maneira divertida nas redes sociais. Tazio Zambi (PB) postou no Facebook: “gostei muito da música nova do chico buarque, "toca uma antiga".  É o trocadilho ideal, que busquei sem encontrar quando li o título.

Já Alex Antunes (SP) comentou, depois de dizer (meio surpreendentemente) que tinha gostado da música: “e essa notinha fora do cristovão bastos é o bicho.  :D  resume o babado.  Eu li isso antes de ouvir a música e pensei: “Mas que bobagem, o pessoal agora tá achando pelo em ovo, tá achando que uma notinha isolada ‘diz tudo’”.

Fui ouvir a música e me desdisse, dei control-z: a notinha tem tudo a ver, de fato. Por que? É uma notinha isolada, uma tecla aguda do piano, que aparece no clipe em 00:17, dando sinal que começou, e em 03:59, assinalando o fim. Detalhe que abre e fecha a música, serve de batidinhas-com-a-batuta para avisar a orquestra, e serve de ponto-final. E é dentro da harmonia uma nota meio angustiante; lembra aquelas notas de piano insistentes e ominosas na trilha de Eyes Wide Shut de Kubrick.

É uma nota solta, que me parece estar num canal diferente do canal do piano, vem de outra dimensão e é colada em cima. Não é um palavra a mais no texto, é uma ilustração.

Se eu fosse comparar com alguma coisa compararia com aquela nota única, inesquecível em timbre e em colocação mais que perfeita, aquela nota isolada de guitarra (surge pela primeira vez em 00:12) que se tornou a assinatura de “Hello Goodbye” dos Beatles.

Com relação à letra, é uma daquelas cartas de amor que Chico Buarque tem longa prática de escrever e de fato escreve como ninguém. Turbinado, inclusive, pelo prazer perverso de imaginar um milhão de brasileiras ouvindo, suspirando e imaginando por sua vez: “É pra mim que ele está dizendo isso... É a minha cara...” Chico Buarque é uma espécie de Machado de Assis, com público feminino cativo e permanente, dialogando com elas sem intermediários, e dirigindo em grande parte a elas esse meticuloso acariciar de sentimentos.

É um letra com um tom meio velado, porque (fica claro no texto) trata-se de um homem casado dirigindo-se a uma mulher também casada, uma mulher que tem um “vigia”, “um desalmado”, uma mulher por quem ele jura largar “mulher e filhos” para fazê-la “rainha” na “nossa casa”. Que homem nunca jurou isso cem vezes? Que mulher não acreditou pelo menos uma vez?

Chico Buarque já falou em entrevistas que gosta de compor a música antes e encaixar a letra depois, sílaba por sílaba, um processo que ele já descreveu poeticamente como “tijolo com tijolo num desenho mágico / tijolo com tijolo num desenho lógico”. Este método exige a música bem memorizada e repetida mentalmente até não poder mais, enquanto mil palavras e combinações de palavras são tentadas para encaixar na métrica, na cadência, na prosódia, na acentuação, no timbre, no ritmo. Ah, sim: e a letra precisa também fazer algum sentido.

Ao longo de “Tua Cantiga” o poeta explora a alternância de rimas finais em “ir” e “ar”, modulando pra rimas em “”eis”, “iz”, “ei”, “ou” na parte do meio. E com um detalhe tipicamente buarquiano de parelhas de rimas toantes encaixadas exatamente nas mesmas posições da estrofe, com uma exatidão e uma sutileza admiráveis: suspiro/ligeiro, nome/perfume, lenço/alcanço e assim por diante.

Do ponto de vista da cadência, as estrofes da primeira parte da canção, a mais interessante neste aspecto, têm um formato curioso. (Isto é uma marcação que eu faço mentalmente, mas é subjetiva, não sei todo mundo sente essa cadência da mesma forma.) A cadência é: 4-1-4 / 4-1-4 / 4-1-4-1-4-1-1. Isso dividiria visualmente a estrofe assim:

quando te der
sau
dade de mim;
quando tua
gar
ganta apertar;
basta dar um
sus
piro que eu vou
li
geiro te con

so-lar


Isto é um dos recursos que permitem à letra de música, caso o letrista queira, ser um produto mais sofisticado do que o poema escrito, embora somente uma porção bem pequena das letras se preocupe conscientemente com ele. A melodia preexistente à letra impõe a ela cadência, acentuação, pausas, etc.: e a letra, que de si já traz esses elementos, entra numa relação de tensão com a estrutura proposta pela melodia, uma tensão que ora se resolve com uma coincidência exata de efeitos, ora com um leve dissonância que, em vez de um ruído desagradável, pode produzir, quando bem feita, um leve surpresa de novidade.

O poeta faz referência a Shakespeare, ao famoso Soneto 116, o que fala em “marriage of true minds”: “ou estas rimas não escrevi / nem ninguém nunca amou”. Elba Ramalho gravou esse soneto em 1984, na versão em português de Ana Amélia e música de Tadeu Mathias: “Se isto é falso, e que é falso alguém provou, não sou poeta, e ninguém jamais amou” (“If this be error and upon me prov'd, / I never writ, nor no man ever lov'd.”)

“Amor Eterno”, álbum “Do Jeito Que a Gente Gosta”:

Citar Shakespeare está totalmente de acordo com um tom poético onde o camarada sugere à musa “deixar cair um lenço” para que ele o recolha. É com essas imagens e contextos tipo Segundo Reinado que um certo pessoal moderno se invoca às vezes – o pessoal para quem o Passado é um país inimigo que precisa morrer à míngua. E é isso que torna Chico simpático aos olhos de outros grupos, para quem é preciso transformar o mundo, desde que se transforme somente a parte que eles não gostam e se deixe o resto confortavelmente intacto.

O poeta oscila com fluidez, e quase sem ser percebido, entre essa dicção clássica e uma dicção mais popular e contemporânea, que o faz prever-se “aperriado”, tratar a musa por “minha nega”, chamar o maridão de “teu vigia”... O seu dicionário poético é rico assim, de termos rebuscados (mas que o ouvinte geralmente intui pelo contexto) e termos da linguagem das ruas, sem muita preocupação em carimbar as gírias do momento.

“Tua Cantiga” é uma música muito boa, consegue ter complexidades e sutilezas e ser assobiável, dá prazer ao ouvido e dá combustível ao pensamento. Resta esperar o disco.






sexta-feira, 28 de julho de 2017

4255) Dicionário Aldebarã XV (28.7.2017)




(ilustração: Moebius)

A civilização humanóide de Aldebarã-5 possui uma complexa civilização muito influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza de seu planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Birggyon”: a sensação de incômodo moral que se experimenta diante do pedido de ajuda de uma pessoa extremamente merecedora e necessitada, mas cujo pedido é materialmente impossível de se atender.

“Carnitone”: exercícios de alongamento, levantamento de pequenos pesos e movimentos repetitivos que permitem, aos idosos, cair sem se machucar, apanhar objetos embaixo dos móveis, etc.

“Sembra”: costume, nos debates políticos, de ficar de pé no recinto e dar as costas ao orador, quando não se concorda com o que ele diz.

“Garpanini”: superstição que consiste, em momentos de impasse, conflito, expectativa, etc., em juntar as iniciais dos nomes das pessoas num grupo qualquer, formar com elas uma palavra, e a partir desta um acrônimo significativo.

“Tamps”: redes de tecido elástico que de acordo com o peso da pessoa vão se distendendo e mudam de altura em relação ao chão, e de colorido.

“Peonols”: casacos recombinatórios, que podem ser adaptados para diferentes ocasiões sociais, com diferentes conjuntos de golas, bolsos, mangas, etc., presos por velcros.

“Ballonys”: quadros que vistos à distância exibem uma imagem, e vistos bem de pertinho mostram que esse conjunto de luzes e sombras é formado por um caligrama escrito em letras muito miudinhas, relativo à imagem.

“Oftet”: a situação do sujeito que acaba de assumir um emprego novo, obedecendo ordens e tomando decisões sem ter a menor idéia do que está fazendo.

“Ensfig”: o ato de abrir um peixe cozido e extrair-lhe, sem o uso de facas ou outros instrumentos, a espinha inteira de uma só vez, o que é considerado de bom augúrio e indica que um pedido, a ser feito na hora e em silêncio, será atendido.

“Lupcal”: o hábito, quase mania, de algumas pessoas que anotam com pontualidade e rigor todas as coisas que fazem: copos dágua que beberam, quilômetros que andaram, livros que leram.

“Gomuss”: sucos de fruta salgados, preparados com frutas excessivamente doces ao natural, que se dão de beber aos doentes com pressão baixa.

“Noguái”: nome dado às trilhas traçadas no chão do mato pelos pés dos caminhantes, para diferençar de “nogandid”, as estradas pavimentadas ou de terra por onde passam veículos.

“Tussanj”: pequenas canetas-tinteiro que usam tinta colorida vegetal e, ritualisticamente, só podem ser usadas para escrever determinados tipos de texto (cartas, orações, documentos oficiais, etc.).

“Carpambistan”: jogo de salão em que peças coloridas são distribuídas, emborcadas sobre uma mesa, e combinadas duas a duas, e depois descritas de forma metafórica pela pessoa que as escolheu; cabe aos demais adivinhar quais são as duas peças assim descritas.











sexta-feira, 21 de julho de 2017

4254) A melodia poética (21.7.2017)




(soneto de Rainer Maria Rilke)

A poesia tem uma dimensão melódica que a aproxima da fala humana.  Não da fala solta e desatenta dos instantes banais, mas de uma fala transfigurada.  Uma fala que nasce também dos ritmos de nossa voz, mas da voz que usamos nos momentos mais carregados de urgência, de emotividade, de concentração.

Comentando a amizade literária entre o poeta norte-americano Robert Frost e o crítico britânico Edward Thomas, Matthew Hollis observou:

Para esses dois homens [Frost e Thomas], a máquina que move a poesia não é a rima nem sequer a forma, mas o ritmo, e o órgão pelo qual ela se comunica é o ouvido que escuta, mais do que o olho que lê.  Para Thomas e Frost isso acarretava uma fidelidade mais à frase do que à contagem métrica, aos ritmos da fala mais do que às convenções poéticas; uma fidelidade àquilo que Frost chamava de “cadência”.  Se você já ouviu pessoas conversando por trás de portas fechadas, raciocinava Frost, você já deve ter reparado que é possível entender o sentido geral de uma conversação mesmo quando as palavras propriamente ditas são indistintas. Isto é porque as entonações e as sentenças com que falamos estão carregadas de sentido, formando um “significado sonoro”.  É sobre esse significado, desencadeado pelo ritmo da voz que fala, que a poesia se comunica de maneira mais profunda.  Thomas escreveu certa vez: “Um homem não pode escrever melhor do que ele fala quando alguma coisa o emocionou profundamente”.

Acho que tudo isto deve ser considerado a sério quando falamos que a poesia tem influência oral, da fala, etc.  Muita gente pensa que isto indica apenas que a poesia deve ser sempre coloquial, informal, descontraída, parecida com o modo desconexo e descuidado como falamos.  Não é bem isso, ou melhor, não é somente isso.  A poesia deve se aproximar da fala em todos os registros da fala; em todas as maneiras com que somos capazes inclusive de imprimir à fala (entre outras coisas) gravidade, tensão, emotividade, arrebatamento. 

Como se tivéssemos um telefonema de quinze segundos para comunicar algo muito importante a alguém, mas em compensação pudéssemos preparar e ensaiar o que dizer nesses 15 segundos durante o tempo que fosse necessário.

A fala tem seu encantamento próprio; a mera vibração da voz humana é carregada de sentido, e nos permite entender o que é dito mesmo quando, por trás de portas fechadas, não percebemos as palavras, mas entendemos a urgência indicada por aquela tensão. 

Num país estrangeiro, somos muitas vezes envolvidos em situações em que pessoas estranhas se exprimem num idioma que desconhecemos. E conseguimos perceber muito do que está sendo dito, porque existem naquelas vozes as correntes subterrâneas de emoção que independem de idioma. E não me refiro a recursos como mímica ou expressão facial; basta um telefonema. Basta ouvir rádio numa língua desconhecida.

Basta ouvir um recital de poesia em japonês, como já me aconteceu. Entendemos aquilo? Não. Mas respondemos emocionalmente àqueles sons. O isomorfismo emocional entre voz e ouvido faz com que aquela vibração sonora desperte em nós estados de espírito próximos do que a produziu. A melancolia desperta a melancolia, a raiva desperta a raiva, o medo o medo.

Ouvindo pessoas que falam numa língua desconhecida, não é o sentido dicionarizado de suas palavras que percebemos, é a urgência tonal e rítmica da voz, suas ênfases, suas pausas, a dinâmica que a faz subir e baixar de volume. Tudo isto produz a emoção melódica com que a voz humana nunca deixa de nos atingir.

T. S. Eliot dizia:

A poesia não deve derivar para muito longe da nossa linguagem ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos.  Que seja ela acentual ou silábica, rimada ou sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com as formas mutáveis do discurso coloquial. (...)  Cada revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama, num retorno à fala comum.

Existe uma espécie de cordão umbilical ligando a poesia discursiva à fala. Isto talvez explique a tensão em duas fronteiras conflagradas que a poesia mantém com outras formas de expressão.

A primeira é a fronteira entre a poesia discursiva e a poesia visual. É um cabo-de-guerra entre o ouvido e o olho. Principalmente depois da invenção da imprensa brotaram movimentos explorando o lado gráfico da poesia, muitas vezes em detrimento de seu lado discursivo.  São os caligramas da poesia barroca ou dos vanguardistas do século 19 como Apollinaire; são os poemas concretos e o poema processo do século 20, todas as experiências em que a forma visível das letras e das palavras e das frases se sobrepõe a sua carga original de significado.  Quando isto acontece, o leitor de poesia formado pela poesia discursiva sente-se pouco à vontade, porque enxerga naquilo uma perda da melodia poética, um afastamento da voz e do ouvido.  São poemas que é praticamente impossível (ou inútil) ler em voz alta para alguém que não os vê. Quando a poesia começa a ser feita para a página e para o olho, afasta-se desse murmúrio de vozes humanas que lhe deu origem.

A outra fronteira belicosa é a que a poesia mantém com a canção, com a letra de música. No caso da canção, o leitor volta a pressentir uma perda da melodia original da fala, só que desta vez pela interferência de uma melodia externa, invasiva, uma melodia autoritária que quer se afirmar como única leitura melódica possível. 

Por mais que a melodia de uma canção se aproxime das melodias espontâneas de nossa fala, ela será sempre uma melodia formalizada e especificamente musical, e dessa forma é como se obrigasse a fala a uma sujeição pouco confortável.  Como se a melodia da fala, tão livre e não-planejada, tivesse que ceder lugar a uma melodia mais deliberada, mais poderosa, uma melodia de natureza estrangeira à fala.

Percebemos isso quando lembramos de verbos tão próximos quando cantar e cantarolar. Cantar pressupõe uma intenção clara, um esforço, uma técnica, mesmo uma técnica amadorística. A pessoa que canta está fazendo um esforço consciente para se aproximar daquela melodia formalizada que a canção traz em si. Já a pessoa que cantarola está mais perto da fala. Cantarolar é repetir a canção de um maneira mais leve, descontraidamente imperfeita, sem compromisso, meio que fugindo a essa melodia pronta que a canção traz consigo. Cantarolar é tentar ir de volta para a melodia da fala, a melodia de quem está dizendo alguma coisa com uma certa musicalidade, mas sem se preocupar em obedecer demais à música extra-fala que vem colada à canção.



(um versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa (ed. Segmento, São Paulo, # 73, novembro de 2011)







terça-feira, 18 de julho de 2017

4253) Como descobri que não sou fã de nada (18.7.2017)




Não foi propriamente assim que aconteceu. Estou apenas traçando uma versão mais aerodinâmica, para simplificar o relato.

Eu estava num evento ligado a Bob Dylan, abertura de uma exposição em São Paulo dedicada ao bardo de Minnesotta. Teve DJ, teve som ao vivo, teve um coquetel. Eu conversava numa roda de conhecidos, e de repente me vi diante de uma moça simpática, jovem, que falava de um jeito que eu achei bem interessante. O diálogo era a respeito de alguma outra coisa, mas a certa altura ela perguntou:

– E você, é fã de Dylan?

– Claro – eu respondi.

– Diga sua música preferida. Não!... Ninguém tem uma só, todo mundo tem muitas. – Eu já achei inteligente essa ressalva, e me animei todo. – Diga uma que você gosta.

Puxei de uma cartola qualquer um coelho aleatório.

– “Desolation Row”.

Os olhos dela se iluminaram.

– Que maravilha! Eu também. Deixe ver... você gosta mais das versões antigas tipo Royal Albert Hall e Dublin, ou das mais recentes, tipo Locarno, Oslo...?

Comigo não tem tempo ruim, de modo que eu dei um gole da bebida e respondi, na cara de pau:

– Eu acho que eu gosto da versão original, do disco.

Ela me olhou com um misto de dó, magnanimidade e irrisão. E disse:

– Ah. Então você não é um fã. Você é um ouvinte casual.

O país das artes é vizinho do país das religiões, e o trânsito através de suas fronteiras, em ambas as direções, é intenso. Às vezes a gente pensa que está num deles, e quando vê, todo mundo em volta está falando o idioma do outro.

O fã não é alguém que se limita a gostar, é alguém que desenvolve um culto voraz. Camões dizia, erradamente ao meu ver, que “transforma-se o amador na coisa amada”. Eu acho que o amador, e o fã nada mais é que isto, transforma o mundo na coisa amada. Pra onde ele se vira, só enxerga aquilo.

O fã transforma a coisa amada num labirinto fractal onde cada detalhe se subdivide e se supermultiplica em um milhão de outros. Não basta ser fã de (vá lá) Camões. É preciso rastrear todas as versões que o soneto de Jacó e Labão já teve, é preciso saber na ponta da língua todos os endereços onde o poeta pendurou seu casaco, é preciso colecionar memorabilia, é preciso ter uma coleção de perguntas de algibeira para dinamitar as pretensões dos incautos.

Lembro do saudoso crítico de cinema André Setaro, de Salvador, meu parceiro etílico e meu contemporâneo, que assinava críticas na Tribuna da Bahia quando eu fazia o mesmo, com mais rapidez e menos perspicácia, no Correio da Bahia.

Um dia entro eu num daqueles velhos cinemas nos arredores do Pelourinho para assistir, se não me engano, Trama Macabra, o derradeiro filme de Hitchcock, quando esbarro com Setaro. Cruzei a cortina e encontrei-o de pé, junto àquele tradicional balcão de metro e meio de altura que protegia a fila mais afastada da tela. Conversamos ali enquanto iam sendo exibidos o Canal 100 e os trailers. Quando surgiu a ponteira indicativa do filme, falei:

– É o filme agora. Bora sentar?

Ele me olhou com cara de fã ofendido e disse apenas:

– Filme de Hitchcock assiste-se de pé, em sinal de respeito.

E fê-lo. Talvez só o tenha feito porque sentei poucas filas à frente e o fiquei vigiando com o rabo do olho, e ele então não teve outro jeito senão manter a pose; mas fê-lo, ora que diabo.

O fã se confunde muitas vezes com o colecionador, porque uma coisa conduz à outra com a mesma fluidez com que ser noivo conduz a ser marido. O colecionador é um cara que casou com uma missão, e muitas vezes essa missão nem é um ser específico, com cara na foto e nome no cartório; é um mero conceito abstrato.

Meu pai tinha um amigo que colecionava qualquer exemplar de qualquer periódico, desde que fosse o “ano 1, número 1”. De tudo que saía em Campina, Seu Nilo comprava um exemplar e remetia para esse cidadão, cujo nome minha incúria não guardou para a posteridade. E se considerarmos o índice de mortalidade infantil das publicações brasileiras, as literárias em especial, penso nas raridades valiosíssimas que ele terá amealhado no correr das décadas.

Porque existe um mercado subterrâneo para alimentar o fã-colecionador. Algum tempo atrás eu estava bebendo no Amarelinho da Cinelândia, numa mesa grande onde havia um ou dois amigos e outros caras que conheci na hora. Passou uma garota lindinha, meio hippie, distribuindo filipetas de shows de rock que ia haver no Teatro Odisséia e no Circo Voador. Um cara ao meu lado chamou a garota e pediu uma filipeta de cada e pôs na mesa, junto do pacotinho de amendoim. Estranhei um pouco porque o cara tinha jeitão de quem gosta de ver shows de Dona Ivone Lara, não do Macaco Bong.

– Você vai ver esses shows? – perguntei.

Ele deu um gole do chope, leu com atenção todas as filipetas, e guardou no bolso da jaqueta, enquanto respondia:

– Eu não vejo os shows, eu coleciono isso.

– Você é fã de rock?

– Eu mesmo não – disse. – Mas conheço fã de rock. No ano passado eu vendi uma filipeta dessa, do primeiro show dos Paralamas do Sucesso, por cinco mil reais.

Como disse um economista amador, demanda gera oferta e oferta gera demanda. Um rabisco a carvão feito por Van Gogh, cujo valor estético roça o zero, é vendido por milhões de dólares para um fã que vai... expô-lo no Metropolitan? Não, trancá-lo num cofre, junto com a certeza de possuí-lo.

Diante disso, nós, “ouvintes casuais” (não, não esqueci, moça, continua encravado, e doendo) temos apenas que nos recolher à carapaça da nossa ignorância e prosseguir rastejando no chão desse oceano de possibilidades. Por mais que a gente pense que ama Luís Buñuel ou The Incredible String Band ou Ellery Queen sempre vai aparecer à nossa frente um indivíduo blasé perguntando se a gente sabe a marca de talharim que o ídolo preferia.

Um rapaz estava numa festa na mansão da família de um amigo de faculdade. Lá pelas tantas, começou a conversar com a avó do amigo, uma senhora setentona, simpática, boa de papo. Depois de alguns minutos, a senhora suspirou e disse:

– Mas o que é isso, o senhor tão jovem, a festa cheia de gente jovem, e eu aqui lhe incomodando... Vá circular, se divertir.

– Qual nada – acudiu ele de imediato. – Estou gostando muito de conversar com a senhora.

– Ninguém da família conversa comigo – confidenciou ela. – Eles dizem que eu sou doida.

– Não é possível. A senhora, tão lúcida, tão inteligente. Por que eles dizem isso?

– Porque eu gosto muito de pão-de-ló.

O moço se surpreendeu:

– Pão-de-ló? Mas isso não tem nada de mais. Eu também adoro pão-de-ló.

Os olhos da madame chamejaram e ela cravou no braço dele cinco dedos de ferro:

– Então vamos lá em cima no meu quarto. Eu tenho vinte e cinco malas cheias de pão-de-ló.

Ela era uma fã.








sexta-feira, 14 de julho de 2017

4252) "O bigode" de Emmanuel Carrère (14.7.2017)



Há um subgênero literário que não tem nome, mas o nome seria “Histórias De Alteração Brusca Da Realidade Por Causa De Um Ínfimo Detalhe”.

É o caso deste curto romance ou novela de Emmanuel Carrère, O bigode (“Le Moustache”, 1986; Companhia das Letras, 2011, trad. André Telles).

A história começa com o narrador, durante o banho, tendo o impulso de raspar o bigode que usa há anos. Pergunta à esposa o que ela acha, ela responde da sala que pode ficar legal; ele raspa o bigode. Enquanto isto, a esposa dá um pulo lá embaixo para resolver alguma coisa.

O problema é que, na volta, ela não faz nenhum comentário sobre o rosto raspado. O marido fica, com a cara boboca de todo marido, esperando a opinião dela, e nada. É como se nada tivesse mudado na cara dele.

Daí em diante é como se o tecido do espaço-tempo tivesse se rasgado (como dizem os autores de ficção científica) e nunca mais pudesse ser recomposto. Ninguém comenta a cra nova, ninguém se lembra de que ele já teve bigode. Quanto mais ele recorre a comprovações externas de sua antiga bigodice (testemunho de amigos, fotos, etc.) mais encontra provas de que nunca teve bigode.

A alusão à FC não é gratuita; Carrère é autor de um livro sobre Philip K. Dick (que não li ainda), e o universo de PKD é um desses em que basta um detalhezinho não “bater” para que o personagem se veja num mundo paralelo. O mundo está sempre por um triz.

Há num livro dele o exemplo famoso de um cara cujo universo desmorona porque ele entra no banheiro de sua casa, às escuras, procura o fio pendurado com a “pera” do interruptor de luz, não acha, e descobre depois que no seu banheiro isso nunca existiu – o interruptor é embutido na parede, sempre foi.  E agora?

“Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, disse Gilberto Gil, referindo-se à fragilidade da vida. (Qual de nós tem 100% de certeza de que estará vivo daqui a uma hora?)  No presente caso, não se trata de um instantezinho do tempo, mas de um objetozinho no espaço. O mundo é normal, rotineiro, seguro. Aí um dia você pensa: "Vou tirar aquele quadro da parede”. Tira, e o mundo começa a desmoronar, e nem botando o quadro de volta a gente é capaz de consertar o estrago.

Pode-se pensar no protagonista de História do Cerco de Lisboa (1989) de José Saramago: ao revisar as provas de um livro de História ele inclui a palavra “não” numa frase, fazendo com que os Cruzados NÃO tivessem vindo em socorro do rei português contra os mouros. Com o livro afirmando isto, a História muda. (Não li o romance – estou me baseando numa sinopse.)

Faz lembrar também, num nível mais metalinguístico, O Sumiço (“La Disparition”) de Georges Perec – um mundo onde desaparece um personagem que simboliza a letra E, e todo o resto desse mundo tem que se reorganizar, tapando os buracos deixados pela ausência dessa letra.

A angústia do personagem de O bigode é, em primeiro lugar, por achar que a mulher ficou doida e que conseguiu criar uma gigantesca conspiração paranóica para convencê-lo de que ele nunca teve bigode. Em segundo lugar, ele começa a perceber que talvez seja ele quem está ficando doido – e sua vida desmorona, sim, catastroficamente, transformando-o num pária em terra estrangeira.

É uma história que parte do cotidiano mais besta para o absurdo mais inquietante, como certas narrativas de David Lynch em que os personagens tomam atitudes irreparáveis e desnecessárias. Fazem isso movidos por algo que não sabemos, porque vemos apenas a fixidez dos seus olhos e a autodestruição desnecessária que executam como resignados robôs.

De Carrère eu só tinha lido O Adversário, a história de um cara que dá um golpe financeiro “na moita” durante anos e acaba assassinando a família inteira quando percebe que vai ser desmascarado. Tem em comum com O bigode essa aparente placidez de uma existenciazinha pequeno-burguesa e francófona, toda nos conformes, que um belo dia desmorona sem que ninguém (a família num caso, o protagonista no outro) esperasse por aquilo.


É num certo sentido uma história fantástica, porque mesmo admitindo que o personagem seja (ou tenha ficado) louco certas “quebras” da realidade parecem indicar mesmo uma ruptura philipkdickiana com o Real. A diferença é mais uma questão de estilo. Tanto o protagonista de O Bigode quanto os de Dick se interrogam constantamente, sem parar, sobre a natureza da realidade, reavaliam e reinterpretam o tempo todo o que lhes acontece. Mas em Carrère isso se dá num contexto organizadíssimo, cartesiano, sem as fraturas de pensamento e de estrutura que Dick exibe em livros como Valis. O livro de Carrère, alucinatório e apolíneo, parece um bilhete de suicida escrito numa caligrafia impecável.





segunda-feira, 10 de julho de 2017

4251) Os melhores filmes brasileiros (10.7.2017)




A Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) fez uma votação em 2016 para apontar os 100 melhores filmes brasileiros. O melhor passatempo diante de uma lista como esta é descobrir tudo que merecia aparecer nela e não apareceu. Não para questionar a competência dos (no presente caso) “cerca de cem membros” da entidade, cujas listas individuais de 25 títulos citaram 329 filmes no total. Mas para mostrar que filme bom nunca para de ter, é só continuar mexendo.

A lista está aqui:

Não vejo muitas surpresas, a não ser a presença de “Limite” (1931) de Mário Peixoto no primeiro lugar, atestando que o mito em torno desse belo filme continua crescendo, estimulado por vários livros e monografias que se escreveram sobre ele, e certamente pela cópia restaurada e enriquecida que a Cinemateca Brasileira lançou em 2011, e que não vi ainda. (Conheço uma cópia antiga, que vi em sessão de cineclube há séculos.)

Do segundo lugar para baixo, tudo é mais ou menos previsível e quase inevitável. Numa contagem rápida, entre os 100 filmes registrei 65 que vi, embora boa parte deles tenha sido há tanto tempo (e uma vez só) que revê-los hoje seria uma experiência nova. O que considero uma boa coisa. Como dizia Faulkner, o passado ainda nem acabou de passar.

A lista é boa, mas se eu tivesse tido que escolher meus 25 eu teria provavelmente posto alguns-20 dos que tem aí, e os 5 que vão aqui abaixo, e que não emplacaram a seleção final. Sem ordem de preferência:


1) O Profeta da Fome (1970) de Maurice Capovilla. José Mojica Marins no papel do faquir de um circo mambembe e brutal. Uma mistura de Kafka, cordel e cinema underground. Fotografia estourada em preto-e-branco, uma história meio caótica, como era habitual no cinema-lixo paulistano da época. Se não me engano a primeira fala do filme ocorre lá pelos oito ou dez minutos de ação. (Não bate o recorde de “2001” de Kubrick, mas é impressionante, até porque neste aqui acontecem coisas mais interessantes do que macacos pulando.)  Vi-o no Festival de Brasília de 1970, quando ganhou vários prêmios. É um delírio punk anterior ao punk.



2) Triste Trópico (1974) de Artur Omar. Este filme genial é tão obscuro que na página do autor na Wikipédia informa-se apenas o ano em que foi feito. É um pseudo-documentário feito na moviola, sobre um médico brasileiro que, depois de viver alguns anos na Europa, volta para o Brasil, interna-se numa região rural remota chamada a Zona do Escorpião, e ali começa a liderar um movimento messiânico. As fronteiras entre documentário e ficção são rompidas o tempo inteiro, e o filme na verdade consiste em várias faixas paralelas de imagem e de áudio, que parecem estimular áreas contraditórias do cérebro e gerar um produto que não está contido em nenhuma delas originalmente. Tipo isso.



3) Hitler III Mundo (1968) de José Agrippino de Paula. Falei acima em “punk anterior ao punk”, mas isso talvez se aplique mais ainda a esta grotesqueria concebida e ajambrada pelo escritor de Lugar Público e Panamérica. Uma sucessão de quadros meio surrealistas, filmados no meio da rua para tumulto e diversão dos transeuntes. A sequência de Jô Soares vestido de kabuki atravessando uma favela enlameada e seguido pela malta é apenas uma de muitas imagens absurdas e inesquecíveis. Personagens da mitologia e dos quadrinhos, frequentes na obra do escritor, aparecem aqui como se fossem eles próprios e sem saber que estão num filme. Já escrevi sobre “H3M” aqui:



4) Menino de engenho (1965) de Walter Lima Jr. A lista da Abraccine incluiu dois filmes de Walter (Lira do Delírio e Inocência), ambos merecedores, mas meu ímpeto bairrista e meu rosebudismo afetivo me obrigam a extrair da memória este belo camafeu em preto-e-branco do imaginário paraibano. A adaptação de José Lins do Rego foi o primeiro filme do diretor, com música de Pedro Santos, fotografia de Reynaldo Paes de Barros. Tenho um piratão aqui, meio precário, mas as belas imagens sobrevivem. É ainda um dos melhores retratos da Paraíba no cinema.



5) Nós que aqui estamos por vós esperamos (1999) de Marcelo Masagão. Todo filme-de-montador é uma iguaria para poucos, mas eu sou um desses poucos e não abro nem prum trem. É uma colagem de imagens e música, sem narração, com breves intertítulos de vez em quando, contando a história do século 20 e por tabela refletindo sobre a Vida, o Universo e Everything. Como toda obra baseada mais na justaposição do que no sequenciamento causal, está aberta a releituras e a novas ressonâncias sempre que for revista.

Se eu ficar mais tempo cavucando no HD vou me lembrar de outros, mas é melhor deixar de reserva para voltar a escrever outro dia.

Por enquanto, estes cinco são ótimos exemplos. Cada um deles me marcou no momento em que o vi pela primeira vez e senti um orgulhozinho meio besta, por tabela, ao ver um brasileiro (uma equipe de brasileiros) fazendo algo que me estimulava a imaginação tanto quanto o que eu via no cinema de fora.

Todos são pouco convencionais; somente Menino de Engenho pode ser considerado cinemão, mas eu gosto de cinemão também. O cinemão é pacificador, nos restitui a um mundo (fantasioso, claro) em que as coisas fazem sentido. Todo filme que segue as regras do cinemão tem algo de líquido amniótico, de volta ao lar.

Os outros quatro são metacinema. Não são pacificadores, são estimulantes, e em alguns casos, alucinógenos. Eles nos dão um encontrão e nos fazem cair aos trambolhões na ribanceira de um caos onde, durante essa queda que dura décadas, temos que fazer sentido da paisagem que rodopia ao nosso redor. Cinema é pra isso também.








quinta-feira, 6 de julho de 2017

4250) João Saldanha, 100 anos (6.7.2017)



Neste mês de julho comemora-se o centenário de nascimento de João Saldanha, jornalista, técnico do Botafogo no tempo em que o Botafogo era um dos melhores times do mundo, técnico da Seleção Brasileira. 

Um personagem fascinante, que comecei a admirar ainda garoto, lendo suas crônicas na imprensa, e depois lendo o excelente Os Subterrâneos do Futebol, relato de sua vivência botafoguense, cheio de episódios pitorescos, mostrando como é o futebol fora de campo.

Saldanha foi um dos caras mais politicamente incorretos do seu tempo, não porque fosse pior do que os outros, mas porque era o único que dizia o que pensava, sem se importar com o que alguém achasse. 

O meio do futebol profissional é todo cheio de dedos, cheio de pose, de discurso patriarcal moralista, quando diante do microfone. Som desligado, ninguém distingue um jornalista de um cartola. João Saldanha rasgava, falava tudo, e por isso ficou com fama de pior do que os outros, quando era apenas mais verdadeiro.

Em alguma prateleira empoeirada, no sambaqui de papel em cujo centro habito, devo ter ainda uma esfarelada pasta de plástico com dezenas de recortes de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, que eu lia com o vagar e a aplicação de quem está estudando para um mestrado.

Acho que ele e Paulo Francis foram os únicos cronistas de quem guardei recortes. Não por achar aquilo um documento histórico, mas para reler de vez em quando e não me esquecer de como se escreve. Se não fosse pela leitura imunizadora dos dois, eu já poderia estar em alguma Academia.

Vi-o em carne e osso apenas uma vez, numa palestra dele na Facha (Faculdade Hélio Alonso), no Rio. Alertado por algum amigo, fui lá na faculdade (era perto de casa) num começo de noite e vi João perorando para 50 ou 60 universitários durante mais de duas horas.

Era um falador incansável, inesgotável e brilhante, da estirpe de Darcy Ribeiro e Ariano Suassuna. Não tinha nhém-nhém-nhém, ia direto ao ponto, mandava uma idéia forte, concreta e inquietante, e em vez de ficar tagarelando em volta dela produzia logo outra; e outra; e mais outra.

Inquieto, desassossegado, teimoso, dos que não abrem nem prum trem. Articulado, hábil com a linguagem, criativo, sem paciência para com a retórica vazia e a pomposidade de tantos técnicos de futebol, de tantos cronistas. Sorria pouco, mas transmitia uma impressionante energia de viver. (“Alegria de viver” me parece um termo besteirolzinho demais, perto da impressão que ele causava.)

No ambiente futebolístico carioca, João mantém uma curiosa relação folclórica com Neném Prancha, figura ligada ao Botafogo e a quem se atribui uma quantidade enorme de frases notáveis. Algumas delas, diz-se, eram na verdade de Saldanha. 

Neném Prancha (tinha esse nome por causa dos pés enormes) foi o cara que dizia: “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano só terminava empatado”, “Pênalte é tão importante que devia ser batido pelo presidente do clube” e outras preciosidades.

Sendo Neném um personagem típico como Seu Lunga ou Zé Limeira, acabaram lhe atribuindo coisas que ele provavelmente nunca disse. Não importa: vale o que foi falado. Quem fica é a frase, a gente pede a conta e vai embora.

Tenho visto algumas notas na imprensa a respeito do centenário de Saldanha, e parece que estão saindo algumas coletâneas de suas crônicas. Uma dessas coletâneas é As 100 melhores crônicas – comentadas – de João Saldanha, de Alexandre Mesquita, César Oliveira e Marcelo Guimarães (LivrosDeFutebol, 2017).

Preciso reler, porque nas épocas mais recentes tenho recorrido, naqueles momentos em que a cabeça está a zero e o texto avança com a velocidade da hera na treliça, de um cacoete em que beletristas pátrios são useiros e vezeiros, esses floreios caligráficos de uma prosa ornamental que consiste em esticar na máxima medida possível uma idéia bem curtinha e bordá-la toda de lantejoulas verbais e miçangas metafóricas com o intuito de disfarçar seu vazio mais vazio do que um estômago vazio.

Vamos lembrar de João. Vida que segue.





segunda-feira, 3 de julho de 2017

4249) Sagarana: "São Marcos" (3.7.2017)



(ilustração de Poty para Sagarana

Que eu me lembre, foi o primeiro conto de Sagarana (1946) que li até o fim, quando eu ainda era um leitor bem “verde”, menino, começando a tatear através de textos mais complexos.

Virou um dos meus preferidos. De certa forma, um dos textos emblemáticos de Guimarães Rosa, onde fui começando a aceitar – eu teria dez, doze anos – uma porção de coisas como parte integral da experiência literária. Conto fundador.

O narrador é meio sem nome, embora diga a certa altura, com a sem-cerimônia tão típica de J. G. Rosa em sua primeira fase: “nesta estória, eu também me chamarei José”. Ele está (tal como o narrador de “Minha Gente”), passando tempos num interior, aqui chamado Calango Frito. Tem interesse por crendices, superstições, feitiçarias.

Tem interesse ainda maior pela natureza, e costuma fazer longos passeios no mato, com espingarda e binóculo. Nesses passeios, conversa e troca histórias com um e com outro. Em termos de narrativas sobrenaturais, é um típico personagem disponível para o bizarro (sem querer com isso falar em influência), como os das histórias de Arthur Machen, Lovecraft, Colin Wilson.

Certo dia, o narrador insulta de passagem (costume vezeiro dele) um negro velho que vive num sítio próximo. Quando está no mato, de repente fica cego, sem aviso, sem dor, sem nada. Cego total. Vem aos trambolhões pelo mato afora até perceber que está de volta ao sítio do negro velho. Invade a casinhola, atraca-se com ele, e de repente recupera a vista, ainda a tempo de ver escapar da mão do velho o bonequinho que até então ele mantivera com uma venda tapando-lhe os olhos. Os dois se desculpam, fazem armistício, e o conto termina.

“São Marcos” é um pequeno compêndio de bruxarias e superstições, justificando o depoimento de Rosa, de ter sido “a peça mais trabalhada do livro”, “demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas”. O título proposto de início (muito bom por sinal) era “Envultamento”. Foi também o penúltimo conto a ser escrito, precedendo “Augusto Matraga”.

Envultamento é uma apropriação do francês “envoûtement”, que é justamente a tática de bruxaria que chamamos comumente de “boneco de vudu” – a criação de uma efígie (vultus) à semelhança de uma pessoa, sobre a qual o bruxo pratica alguma ação para produzir efeitos sobre a pessoa distante.

Este conto tem a estrutura “aos pedaços” de muitas das noveletas de Guimarães Rosa. São histórias onde não vemos o fluxo contínuo de uma mesma ação, e sim uma junção de episódios sucessivos que ocorrem em diferentes tempos e espaços, quase como se o conto em si fosse pretexto para uma pequena antologia de historietas. (O melhor exemplo disso são as historinhas contadas pelos vaqueiros durante a viagem, em “O Burrinho Pedrês”.)

Aqui, em “São Marcos”, Rosa pendura esses episódios num recurso a que lança mão com frequência, o “companheiro de viagem”, que cruza com o narrador e lhe conta fatos sucedidos aqui e acolá. Isso é uma imagem recorrente em Rosa, talvez mais por uma confortável (para mim, pelo menos) memória cultural do que por outro recurso. Quem gosta de histórias gosta de emparelhar cavalos ou de dividir bancos de trem com um personagem que tem uma boa história para contar.

O companheiro de “José” chama-se Aurísio Manquitola, “um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole velho, e com supersenso de cor e casta”. Aurísio repassa para o Narrador uma porção de episódios sobrenaturais, “cáusos” de assombração.

Uma das histórias, aliás, fala de dois homens, Gestal da Gaita e Silivério, que foram postos para dormir na sala de uma casa. Durante a noite, Silivério “viu o cabra vir pra ele, de faca rompente, rosnando conversa em língua estranja”. Uma possessão maligna ocorrida durante o sono em casa alheia, num episódio que lembra a sequência inicial do clássico “Pigeons From Hell” de Robert E. Howard (1938).

Tenho falado nos comentários sobre Sagarana (que fez 70 anos no ano passado) que este livro, a partir de uma das suas epígrafes, sugere temas como “a ida e a volta”, “uma ida, uma volta”, “as idas e voltas”, etc. Aqui há uma ida bem nítida, a do Narrador ao mato. Uma ida maculada pelo malfeito que pratica contra o velho Mangolô, o criador de porcos. E tem a volta na escuridão, no desespero, nos joelhos esfolados, até trombar no velho, até (atipicamente para uma narrativa fantástica, se fosse anglo-saxã) a diplomacia prevalecer e os dois adversários conquistarem algum tipo de trégua, mesmo que seja só um adiamento.

Uma leitura possível do conto seria a análise da “hubris” do Narrador, que na ida humilha o preto velho e na volta, subjugado pelo feitiço, é coagido a vir às cegas pedir-lhe desculpas. Uma alegoria da culpa racial, onde o recurso ao sobrenatural (admitido por ambos) é o fator desequilibrante.

Ainda durante a “ida”, o narrador conta um conto-dentro-do-conto, a história de “Quem Será”. Ele lembra que tempos atrás passava por ali e rabiscava coisas num bambuzal, porque bambus são bons de rabiscar. Dias depois, ele percebe que Alguém, também em rabiscos, respondia às suas frases, sem conhecê-lo. Começa aí entre os dois uma espécie de desafio às cegas, a cada viagem no mato e reencontro com os bambus. É como um muro pichado ou uma porta de banheiro; ou um embate de xadrez por correspondência.

O diálogo com o invisível “Quem Será” gera um momento de revelação verbal na obra de Rosa, o famoso “rol dos reis leoninos”, que o Narrador do conto inscreve nos bambus para intimidar com erudição o oponente invisível, um pouco como Romano do Teixeira citando mitologia grega no desafio de viola contra Inácio da Catingueira:

Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib

Este “poema” abre o famoso trecho do conto, muito citado, onde Rosa afirma que as palavras, como os pássaros, têm “canto e plumagem”, fornecendo uma página inteira de exemplos impagáveis.

Para finalizar, só mais um comentário. Quando começamos a ler, o nosso conjunto inicial de experiências literárias torna-se um zero cartesiano, um parâmetro para medir alturas, profundidades e distâncias. O menino ou a menina vai lendo e pensando: “Ah, em literatura pode-se fazer isso, então!”.

O Narrador de “São Marcos” fica cego de repente, num processo que Guimarães Rosa (o miguilim míope) descreve com seu senso infalível de visualidade:

E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubu, um golpe de noite... e escureceu tudo.

Quando resolve sair sozinho do mato, mesmo cego, ele vem aos tropeções, e sua mente aperreada acaba incidindo naqueles deliriozinhos de quem, acossado por um terror imóvel, meio que se distrai dedilhando nonadazinhas:

Vamos. Os primeiros passos são os piores. Mãos esticadas para a frente, em escudo e reconhecimento. Não. Pé por pé, pé por si. Um cipó me dá no rosto, com mão de homem. Pulo para trás, pulso um murro no vácuo. (...)  Um canto arapongado, desconhecido: cai de muito alto, pesado, a prumo. De metal. Canso-me. Vou. Pé por pé, pé por si... Pèporpè, pèporsí... Pepp or pepp, epp or see... Pèpe orpèpe, heppe Orcy...

Essa divertida troca de idiomas se casa com o que o Narrador lembrara, páginas antes, no tal parágrafo sobre canto e plumagem:

E que o menino Francisquinho levou susto e chorou, um dia, com medo da toada “patranha” – que ele repetira, alto, quinze ou doze vezes, por brincadeira boba, e, pois, se desusara por esse uso e voltara a ser selvagem.

No cérebro atarantado pelo cataclismo, as palavras repetidas em desespero se esvaziam de sentido e se recompõem em outros idiomas, em meros sons, selvagens de sentido.

Mais tarde, chegando ao casebre de João Mangolô, o negro velho, o Narrador se atraca com ele, recupera a vista, e os dois se engalfinham numa escaramuça corporal:

– Conta direito o que você fez, demônio! – gritei, aplicando-lhe um trompaço.
– Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p’ra explicar ao Sinhô...
– E que mais?! – Outro safanão, e Mangolô foi à parede e voltou de viagem, com movimentos de rotação e translação ao redor do sol, do qual recebe luz e calor.

A mente ainda atordoada regurgita pedaços de frases colhidas nos livros escolares, num processo de associação de idéias, cujo resultado humorístico esvazia um pouco a violência da cena (que nem chega a ser tanta).

Nem vou (ou seja, vou) lembrar a presença fugaz, neste trecho, do tema central do livro (“A Ida e a Volta”). Mas é bom registrar que quando um menino de doze anos lê isso ele recebe o recado de que na literatura mais séria é possível encontrar processos mentais que se comparam aos dele próprio. O ludismo verbal de Rosa é às vezes o do erudito, mas muitas outras é o ludismo dos meninos que pensam o tempo todo, que prestam atenção a palavras e frases o tempo todo, cuja mente absorve e borbulha linguagem o tempo todo.