segunda-feira, 14 de novembro de 2016

4179) As duas pontas do Tempo (14.11.2016)



Falei dias atrás sobre os paradoxos temporais, aquelas histórias de Viagem no Tempo em que o viajante faz alguma coisa (matar o próprio avô, por exemplo) que o impossibilita de nascer, de existir, e consequentemente de fazer a viagem onde praticou essa ação, gerando um loop contraditório, onde a conta nunca fecha.

Tem outro tipo de situação nessas histórias que não consiste num paradoxo, mas num momento de revelação ou de epifania. É quando o Viajante no Tempo se depara com um objeto ou uma cena que diz respeito diretamente ao mundo de onde veio, produzindo uma sensação mista de iluminação e de estranheza.

O filme Em algum lugar no passado (Somewhere in Time, 1980, de Jeannot Szwarc, baseado num romance de Richard Matheson) conta a história de um homem que se apaixona pela fotografia de uma atriz, tirada em 1912. O rosto lindo dela o encanta, mas principalmente o seu sorriso e o seu olhar, meio de lado, com uma expressão indefinível de ternura.

Ele dá um jeito de viajar para o passado, numa espécie de projeção mental, sem o uso de uma máquina do tempo. Chegando lá, encontra a atriz, declara-se a ela – o que a princípio a assusta – mas aos poucos vai se aproximando, conquistando sua confiança.

E então acontece uma cena em que a atriz vai posar para uma foto, e ele está em sua companhia. Afastando-se um pouco, ele espera que ela cumpra aquele compromisso profissional rotineiro, mas no momento em que a foto vai ser tirada ela olha de lado e o avista novamente. Então ela sorri, e a foto é tirada. É a foto pela qual ele se apaixonou. Ele se apaixonou por aquele olhar, aquele sorriso – e os dois eram dirigidos a ele.

É uma imagem delicada e significativa, e ilustra bem um aspecto dos “paradoxos temporais”, comuns nas histórias de viagem no tempo. Existe o chamado Paradoxo do Avô (um indivíduo volta no tempo e mata o próprio avô – mas nesse caso ele não teria nascido, etc.), que eu classifico como um “paradoxo negativo”: uma viagem ao passado que anula a sua própria possibilidade de acontecer.

No caso de Somewhere in Time, ocorre o contrário: um “paradoxo positivo”, em que certos fatos do passado aconteceram somente porque alguém do futuro  viajou no tempo e desencadeou os acontecimentos.

Histórias de viagens temporais mostram muitas dessas cenas de reencontros ou de reconhecimentos, em que o Viajante no Tempo se depara (em geral inesperadamente) com alguma coisa que lhe era familiar no futuro de onde veio, que de certa forma desencadeou sua viagem.

No romance de Connie Willis Doomsday Book (1992), a historiadora Kivrin Engle, de Oxford, viaja no Tempo até o século 14 para estudar o mundo medieval. Depois de alguns anos estudando-o em bibliotecas, ela decide (porque o ano em que vive é 2050, onde já existe a Máquina do Tempo) fazer sua pesquisa de campo.

Acontece que Kivrin vai parar por acidente na época da Peste Negra (1348) e daí em diante tudo vira uma aventura meio dark, cheia de perigos e de ocorrências trágicas. Kivrin não corre perigo (ela tomou todas as vacinas existentes em 2050), mas faz o possível para proteger o que eles chamam de contemps, os contemporâneos, as pessoas da época visitada.

Então acontece esta cena curta mas significativa. A certa altura, um mensageiro chega à casa onde ela está hospedada, e que já foi atingida pela peste. Ele traz uma mensagem do bispo local, avisando os moradores sobre a peste – um documento histórico:

O garoto tirou um rolo de pergaminho da sacola, e o atirou aos pés de Roche.
Roche abaixou-se e o apanhou na laje do piso, e o desenrolou.
- O que diz a mensagem? – perguntou ele ao menino, e Kivrin pensou: claro, ele não sabe ler.
- Não sei – disse o menino. – É do bispo de Bath, e ele mandou entregá-la em todas as paróquias.
- Quer que eu leia? – perguntou Kivrin.
- Talvez seja sobre o nosso amo – disse Roche. – Talvez ele esteja avisando que vai se atrasar.
- Sim – disse Kivrin, tomando a mensagem das mãos dele, mas sabia que não era.
Estava escrita em latim, numa caligrafia tão rebuscada que ficava difícil de ler, mas isso não tinha importância. Ela já lera a mensagem antes, na biblioteca Bodleian.

São detalhes assim que fazem a FC produzir em certo tipo de cientista aquilo que o pessoal chama às vezes de “um frisson”, um arrepio de emoção.

Eu tenho 11% de historiador em mim (quando fui morar na Bahia pensei em cursar História na UFBA, no campus de São Lázaro).  Duvido que um historiador de verdade não se emocione com esse momento em que uma personagem volta 700 anos no passado e de repente chega-lhe às mãos, novinho em folha, com a tinta quase úmida, um documento que ela manuseou, empoeirado, quase se esfarelando, numa biblioteca. São duas pontas do Tempo que se tocam.

É como a emoção de Robinson Crusoé ao ver, na areia da praia, a pegada de Sexta-Feira.