quarta-feira, 26 de outubro de 2016

4174) O paradoxo do avô (26.10.2016)



As histórias de viagens no tempo, pela sua própria natureza, produzem um certo número de situações-padrão que se repetem  de modo aparentemente aleatório e de modo aparentemente orgânico ao longo dos tempos. 

O mais conhecido e mais desgastado deles é o famoso “Paradoxo do Avô”: João volta algumas décadas no passado, encontra seu próprio avô ainda jovem, e consegue matá-lo. Com isso, o avô não casa com a futura avó; o pai (ou a mãe) de João nunca chega a existir. Mas então João também não existiu. Portanto não poderia viajar no tempo, nem matar o próprio avô. Sendo assim, o avô ficou vivo, casou, lá vem o pai, lá vem João, a máquina do tempo...

É um loop que a cada volta anula seu próprio postulado de origem, mas prossegue em frente por pura bravata narrativa, até explodir de encontro à próxima bifurcação lógica, e tudo recomeça.  Nesse loop, a cada passada se tem uma resposta positiva e negativa, alternadamente (“matou mas então não nasceu”, “não matou e nasceu sim”), mas essa polaridade se inverte no fim de cada passada. É como um anel de Moebius, onde temos a sensação de estar numa superfície contínua mas ela muda de dimensão quando chega no ponto da “torção”.

O que sempre me intrigou neste clichê narrativo da pulp fiction foi o fato de que o avô entra na volúpia desse morticínio como entrou Pilatos no Credo e a Fiat no Pai Nosso. Por que matar o avô? Se o paradoxo inteiro se origina na possibilidade de anular a existência do viajante no tempo, bastava que ele voltasse e matasse o próprio pai, impedindo-o de gerar o filho. Pelo que entendo, o paradoxo não se alteraria.

O grande problema deve ser que talvez esse confronto ficasse freudiano e gráfico demais. Édipo anda com muita visibilidade. Voltar no tempo pra matar o próprio pai?!  Inaceitável pelas bilheterias. No máximo, voltar no tempo para garantir que seu pai vai ser homem bastante para comer sua mãe, como fizeram os autores de De Volta Para o Futuro (1985). 

Na maioria das histórias, o inconsciente coletivo (dos redatores em mesas grupais, ou de contistas em serões solitários) pulou o pai e colocou o avô em xeque. Não foi nada mal para ele. The Grandfather Paradox. Acho mais divertido ser nome de paradoxo do que ser nome de rua.

Talvez tenha sido um impulso márqueto-afetivo semelhante ao que fez Walt Disney e seus criadores transferir certos conflitos e certas liberdades, transferindo ambos para “tios” (Donald, Mickey, etc.) e não para pais e mães.

Nesse aspecto, acho que os escritores de FC nos pulp magazines dos anos 1940 tinham receio de mexer nesses países-baixos da mente humana , diante de um público leitor mais ou menos composto de jovens proto-nerds, zés-ninguéns desempregados, soldados em território de combate...  Matar o pai poderia ser perturbador, mas matar o avô era algo mais intermediado, mais diluído, era como acasalar com a prima.

O Paradoxo do Avô, portanto, é um circunlóquio, uma maneira mais tortuosa e menos impactante de sugerir uma ideia, usando uma volta mais comprida para fazer estalar o gatilho do enredo: um homem é capaz de anular a si mesmo a ponto de anular também essa anulação que ele mesmo promoveu. 

A auto-anulação voluntária: olha aí, Carlos Drummond já previa isto em seu poema “Science Fiction” (1962):

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o.
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.