sábado, 3 de setembro de 2016

4153) Daqui não saio, daqui ninguém me tira (3.9.2016)




Gosto de inventar gêneros cinematográficos novos. Você pega uma dúzia de filmes e cria uma frase que define o que eles têm em comum.

Quando chamamos um filme ou romance policial de whodunit, esse nome é uma frase: “Quem foi que fez [isto]?”. Não importa quem sejam os personagens, onde se passa a história, em que época. Se houver um crime e alguém empenhado em descobrir quem foi seu autor, é um whodunit.

A gente poderia, por exemplo, inventar um gênero chamado Escapei do Fim do Mundo, um gênero abrangente e bom de drama, que poderia incluir tanto E o Vento Levou quanto Moby Dick, dando-se ao termo “fim do mundo” uma certa amplitude metafórica. Uma fazenda, um navio, valem por mundo para alguém.

Ou um apartamento de frente para o mar, quase térreo, num prédio pequeno, sem elevador, anacronicamente encravado entre espigões futuristas com nome de artistas ou nome de santos. Daqui Não Saio, Daqui Ninguém Me Tira poderia ser um dos gêneros a que pertence o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius, rodado no Recife, que ganhou prêmios importantes e acendeu polêmicas.

A ex-professora Clara (Sonia Braga) é pressionada por todos os lados, até pela família, a vender o último apartamento do prédio, que está sendo adquirido aos poucos por uma grande construtora. Ela não quer vender, não quer sair.

Por um flashback inicial vemos que passou por ali a história dela e de mais de uma geração de pessoas. Passado é passado, todo ele tem o mesmo peso. O Passado pode ser um móvel véi encostado numa parede igual a qualquer outra. Só a gente sabe o tesouro que existe ali.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Não lembro se a frase é pronunciada em Aquarius. Eu vejo nessa expressão menos um trecho de marcha de carnaval do-tempo-de-Adão-cadete do que uma frase-feita, de autor conhecido, mas incorporada ao linguajar coloquial do brasileiro. Tal como “eu era feliz e não sabia”.

Engraçado.  Aquarius e Downton Abbey (série britânica, na Netflix) são os dois primeiros exemplos que consigo pensar para o gênero do Daqui Não Saio...  Na série, a família Crawley, liderada pelo cavalheiríssimo Lord Grantham, passa por catástrofes mundiais sucessivas, e vê-se o tempo todo ameaçada de ter que desmembrar suas propriedades e perder sua Casa Grande. Trata-se de um espantoso castelo, que pertencia, na época retratada, ao Lord Carnavon que financiou a descoberta da tumba de Tutankâmon. Qualquer um de nós terçaria armas contra quem quisesse nos arrancar de uma vivenda assim. Que é nossa por direito adquirido.

O terceiro exemplo que me ocorre eu não vi no cinema, vi no show Semba de Antonio Nóbrega, no Sesc-Pinheiros em São Paulo, onde ele repassa um belo dum repertório sambístico. E ele canta o hino do Daqui Não Saio Daqui Ninguém Me Tira: “Se o senhor não tá lembrado, dá licença de eu contar: aqui onde agora está esse edifício alto era umas casa véia, um palacete assobradado...” E o enunciado do gênero, por mais heroico que seja, não cancela o fato de que as pessoas acabam saindo mesmo, acabam sendo tiradas mesmo, como foram em Pinheirinho (SP), na zona portuária carioca, no mundo afora. 

Os posseiros urbanos de Adoniran Barbosa vivem na mesma expectativa de Clara, no seu idílico Pina, porque quando menos se espera chegam os homens com as ferramentas “e o dono mandou derrubar’. Há um repertório de variadas pressões para tirar Clara de casa, umas desagradáveis, outras bizarras, outras repugnantes. E Clara finca pé e diz: agora é que eu não saio mesmo.

O espaço urbano é um campo de batalha a ser conquistado, defendido. Hoje a batalha é financeira, pós-geográfica, como dizia o cyberpunk Gibson. O filme aponta um conflito concentrado, minúsculo: uma pessoa irredutível diante de uma meta-transação onde muita gente tem algo significativo pra ganhar. E só não ganhou ainda porque a transação empacou, não avança. Por causa dela.  E as pessoas se irritam. Quem é ela para desdenhar uma coisa que a maioria deles não hesitaria diante de nada para obter?

(continua)