sexta-feira, 1 de julho de 2016

4129) Manuscrito encontrado numa garrafa térmica (1.7.2016)



Se isto aqui fosse um romance, refiro-me ao gênero literário, não ao coeficiente amoroso-afetivo da história narrada, eu começaria falando de mim mesmo e das origens dos dois ramos familiares que me deram origem; fá-lo-ia enumerando antepassados, entreparando aqui e ali para narrar um episódio edificante ou uma anedota familiar... enfim, dando uma idéia completa da linhagem que me produziu e só então, mesmo que já fosse lá pelo terceiro volume, dando início à narração das aventuras propriamente ditas do personagem introduzido com tanta largueza, ou seja, eu mesmo. Acontece que isto aqui não é um romance, muito menos esses do tempo em que se usava pena e tinteiro; isto aqui é uma carta frenética, desesperada, rabiscada às pressas no convés de um navio impossível que se aproxima de um desenlace fatal, uma catástrofe tão horrenda quanto inevitável, mas mesmo sendo certo o nosso fim restam-me alguns minutos em que, em meio à balbúrdia geral, rabisco com força estas linhas que pretendo antes do instante final arremessar para longe do navio devidamente arrolhadas no interior do objeto flutuante que não nomearei para não ofender a inteligência do leitor de hoje em dia.

Vejam só, metade do tinteiro já se foi e num certo sentido ainda nem comecei! Mas, reiterando o que acabei de afirmar: é irritante constatar que uma parte da crítica continua a exigir da literatura contemporânea a presença de certos efeitos narrativos, certos jogos de cena, certas cerimônias de cumplicidade entre autor e leitor diante da inverossimilhança irremediável de certas partes da obra, mas afinal o leitor compreende que o autor se diverte escrevendo aquilo, e o autor pressupõe, porque pressupor é um karma dos solitários, que o leitor vai dar grandes gargalhadas com aquilo e recomendar a algum amigo. Nada temos contra certas convenções literárias, mas francamente, exigir que todo início de texto comporte um resumo genealógico do protagonista é como querer impor aos poetas, como modelo, esses poemas onde todas as palavras têm a mesma inicial.

É por isso, e por outras coisas além disso, que a jovem geração da literatura contemporânea procura refugiar suas obras por trás de anteparos conceituais como “movimento X”, “manifesto Y”, “escola Z”, e talvez não seja cabotinismo de nossa parte supor o surgimento possível de um gênero designado por algo como “Histórias de Navios Catastroficamente Prestes a Naufragar Por Erro Humano e Indiferença Divina”, e que um dos pressupostos do gênero fosse, na clivagem moderna dessa escolha, a preferência pela narrativa rápida, incisiva, crucial, frases curtas qual navalha, mas sem abrir mão do apanágio de toda a literatura que se preza durante os derradeiros decênios, a literatura da perquirição subjetiva dos meandros do ser, porque mesmo nessas narrativas, digamos, forjadas no calor da refrega, o pensamento humano ainda é capaz de elevar-se altaneiro, pairar por cima das procelas, distanciar-se espiritualmente o tempo necessário para ver parar o tempo, parar e estender-se todo, oferecendo-se, diante de si.

Note-se que (vou ter que resumir essa discussão, o oceano se escancara, lá vem a Coisa) não há nenhuma conotação sobrenatural no uso acima da palavra espírito, porque para nós ela representa uma epifania totalmente nos domínios dos neurônios, mas cuja intensidade leva a vítima (pois não pode ser outro o termo) a procurar uma explicação de grandeza cósmica para o que lhe aconteceu.


Enfim – são muitas as questões de peso (nem vou falar na tinta, que só resta um tantinho) sobre essa questão dos textos fundadores do gênero das “Histórias de Navios Catastroficamente Prestes a Naufragar Por Erro Humano e Indiferença Divina”; deixando a questão em aberto, convoco meus pares para a discussão destes palpitantes temas, tudo isto, é claro, dependendo da possibilidade deste invólucro-ao-mar ser avistado, ser recolhido, ser aberto, ser lido, ser decifrado, ser compreendido, ser divulgado, ou seja, ironicamente: supondo que aconteça a este farrapo mal escrito e salpicado de água e sal o que não aconteceu aos muitos livros que publiquei na treva e que da treva jamais saíram, mas o que importa é ser otimista, de modo que vou terminar isto, dobrar, enfiar no seco interior da garrafa, naquele labirinto cilíndrico espelhado, este relato de improviso que pode até talvez pecar no factual, mas contém o gérmen da uma discussão cuja importância me trouxe força extra ao braço que atirou a garrafa cor-de-laranja por cima da amurada, entregando confiante estas linhas à magnanimidade das ondas, onde boiaram por muito tempo antes de serem recolhidas, desdobradas, lidas pela primeira vez, futuro leitor, como está acontecendo agora, e----vi------dente---------------