segunda-feira, 13 de junho de 2016

4124) Quinze escritoras (13.6.2016)



Tem circulado no Facebook uma espécie de corrente (que me foi repassada) pedindo que a gente cite 15 autores que nos marcaram.  Tempos atrás fiz uma dessas listas, e uma amiga, cuja opinião respeito muito, chamou minha lista de machista, porque só citei autores homens. Eu nem tinha reparado. Claro que não foi proposital.  Como a maior parte dos preconceitos, meu machismo deve ser inconsciente, embutido no piloto automático. O que não me impede de ter grande carinho e gratidão por cada escritora da lista abaixo (que poderia ser maior, evidentemente). Vamos às damas, portanto.

1. Agatha Christie. Era a autora preferida de minha avó Clotilde. Os primeiros dos mais de 30 livros seus que li foram, aos dez ou onze anos, O Caso dos Dez Negrinhos e O Assassinato de Roger Ackroyd. Com ela me acostumei a admitir o maquiavelismo por trás das aparências bonachonas, das reputações inatacáveis dos cidadãos acima de qualquer suspeita. E aprendi que às vezes quem está contando a história do crime não é um narrador neutro, é o próprio criminoso. (Vale para nações, civilizações inteiras.)

2. Cecília Meireles. Os primeiros livros papel-bíblia que comprei, aos 14 anos, foram as poesias completas dela e as de Manuel Bandeira. Que releio até hoje. O Romanceiro da Inconfidência já bastaria para tornar qualquer pessoa um Poeta Maior. Posso ter herdado dela um certo desligamento, uma certa ausência da vida prática, um jeito mais de contemplar do que de agir. Não me arrependo.

3. Emily Bronte. Li O Morro dos Ventos Uivantes na adolescência. Foi o único livro dela que li, mas é como dizer: “foi a única bomba atômica que caiu em cima de mim”. Meus referenciais de literatura gótico-romântica passam todos por ali, misturados às ilustrações de Fritz Eichenberg na edição da José Olympio.

4. Mary Shelley. Outra de quem só li um livro (e alguns contos esparsos, tentando achar algo que coubesse numa das minhas antologias). Frankenstein fundou, para alguns, o romance moderno de terror, aquilo que chamo de “ciência gótica”. Grande escritor é aquele que cria um personagem e desaparece por trás dele. E neste livro pela primeira vez simpatizei com o monstro, entendi o lado do monstro, senti que por um triz o monstro não era eu.

5. Simone de Beauvoir. Quando li O Segundo Sexo, com vinte e tantos anos, eu já estava arriado-dos-quatro-pneus por ela, graças às Memórias de uma Moça Bem Comportada, A Força da Idade, Sob o Signo da História. Vieram ainda A Cerimônia do Adeus, A América Dia a Dia e algum outro que não lembro agora. Eu a achava linda, e mesmo com a propalada visão-crítica-que-é-apanágio-da-maturidade continuo achando.

6. Nélida Piñon. Nos anos 1970 ela foi uma autora que li miudamente, atentamente, decifrando livros densos, impressionantes, meio oníricos, meio poéticos, como Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (sua estréia, pela editora GRD), A Casa da Paixão, Sala de Armas e outros. Em matéria de “prosa elevada” entre nós, para ombrear com ela só mesmo Osman Lins e muito poucos.

7. Shere Hite & Nancy Friday. Vou trapacear um pouco e dar uma só vaga para estas duas compiladoras enciclopédicas da vida sexual nos EUA. Shere Hite publicou dois Relatórios Hite, um sobre mulheres, outro sobre homens (li os dois na íntegra). Nancy Friday escreveu livros sobre fantasias sexuais pesquisadas por correspondência (My Secret Garden, O Homem e o Amor). Depois de ler estes quatro livros a gente percebe que toda exceção não passa de uma regra que ainda não cresceu o bastante, que em sexo tudo é possível, que tudo pode ser normal entre quatro paredes e em pé de igualdade, que cada um gosta do que gosta, e que não existe um chinelo velho que não encontre um pé doente.

8. Karen Blixen. Também conhecida como Isak Dinesen, era uma baronesa dinamarquesa que escrevia em inglês como gente grande. Suas histórias correm o tempo todo numa raia do insólito que a faz de vez em quando triscar no fantástico. Sua prosa é brilhante em Winter Tales, Sete Contos Góticos, Last Tales.

9. Emily Dickinson. Acho essa “solteirona reclusa” o maior mistério literário da América. Inventou uma linguagem própria, pontuação, notação própria, imagens surpreendentes de um poder simbólico desconcertante, e que só se revela em parte. É uma dessas poetas que inventam não apenas uma obra, mas uma poética só sua. Parecem versículos bíblicos, pequenas adivinhações, bilhetes anônimos e incompletos. Muito difícil de traduzir.

10. Dorothy Parker. É o oposto simétrico de Dickinson. Extrovertida, famosa, língua ferina, teve uma vida atribulada e cheia de paixões e sexo. Contista  mordaz e precisa (Big Loira), poetisa de versos curtos, compactos, dolorosamente verdadeiros. Também difícil de traduzir, embora mais coloquial, mais urbana, mais moderna.

11. Hilda Hilst. Por falar em quem cria uma poética própria, a paulista Hilda me deixou bambo nas cem primeiras tentativas de ler sua poesia densa, ziguezagueante, de imagens consistentemente inesperadas. Seus poemas estavam espalhados pelas publicações literárias da imprensa alternativa dos anos 1970 e eu os lia com o cuidado de quem desarma uma bomba. Depois de certa idade, começou a publicar narrativas fesceninas e virou uma “velha dama indigna” igualmente deleitável.

12. Shirley Jackson. É engraçado, nunca li o livro mais famoso dela, Hill House, tido como o melhor romance de casa mal assombrada. Mas os contos incluídos em The Lottery e em Come Live With Me vão do gótico ao doméstico, do bizarro ao cotidianamente banal, e ninguém melhor do que ela escreve histórias de mulheres que de repente jogam tudo pro ar, chutam o pau da barraca, mudam de nome e vão morar num hotel numa cidade desconhecida.

13. Clotilde Tavares. Pode parecer nepotismo. Mas minha irmã mais velha dividiu comigo livros, filmes e discos até que eu fiquei um rapazinho com 16 anos, capaz de escolher sozinho o que ia ler. Suas novelas de histórias encapsuladas (A Botija, O Monstro das Sete Bocas) reelaboram histórias que ouvimos na infância, mas ela também escreve teatro, poesia, cordel, ensaio, o escambau. Não é mais minha professora, é minha colega, mas ainda influencia.

14. Karen Joy Fowler. Minha professora na Clarion Workshop (em 1991) já foi publicada no Brasil, com O Clube de Leitura Jane Austen, mas ninguém se animou a publicar seus contos brilhantes, premiadíssimos, onde o protagonismo feminino é colocado sem arrogância nem coitadismo; e o romance Sarah Canary, sobre uma mulher alienígena (embora o livro nunca diga isto) que aparece na região rural dos EUA por volta de 1880. Vi poucas pessoas falarem sobre literatura com mais propriedade e finesse.


15. Rachel de Queiroz. Meu pai tinha um volume dela, da José Olympio, com o título Três Romances, que incluía O Quinze, Caminho das Pedras e João Miguel. Nunca me saiu da cabeça a linha inicial deste último, algo como “João Miguel sentiu a peixeira rasgando a barriga do outro homem, depois puxou a arma, jogou longe, saiu correndo”. Não conheço melhor exemplo de início de narrativa in media res. Meio século depois, coloquei o conto de ficção científica dela, “Ma Hôre”, na minha antologia Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica