domingo, 24 de abril de 2016

4107) Shakespeare e Cervantes (24.4.2016)



O conceito de contemporaneidade é uma coisa engraçada. Usa-se muito essa palavra como sinônimo de “atual”, “da época presente”: A música brasileira contemporânea tem explorado tais e tais caminhos.  Mas o que me interessa é a contemporaneidade como laço entre duas coisas, dois acontecimentos bem separados no espaço.

Já li uma crítica questionando uma dessas contemporaneidades históricas (“Fulano e Sicrano viveram na mesma época”). É quando Castro Alves diz, em “O Livro e a América”:

Por uma fatalidade 

dessas que descem de além, 

o sec'lo, que viu Colombo, 

viu Gutenberg também. 

Quando no tosco estaleiro 

da Alemanha o velho obreiro 

a ave da imprensa gerou... 

O Genovês salta os mares... 

Busca um ninho entre os palmares 

e a pátria da imprensa achou...

Não há sincronia entre as vidas e os tempos dessas duas grandes figuras, embora tenham de fato vivido no mesmo século. A primeira Bíblia de Gutenberg é de 1455, quando Colombo era ainda um guri de cinco anos. O “quando” usado pelo poeta não supõe que os dois fatos que refere são simultâneos, mas que são sucessivos. Quando isso, depois aquilo.

Vejam com que fluência o poeta compara a invenção de um com o voo de uma ave, e o descobrimento geográfico do outro com o achamento de um ninho. Essa ligação metafórica suaviza o fato de que os dois viveram em mundos separados. Gutenberg morreu em 1468, sem desconfiar que existia outro continente além do Atlântico. Já Colombo, era um leitor voraz de obras impressas, como as Viagens de Marco Polo.

Salman Rushdie, num texto aludindo à contemporaneidade entre Shakespeare (1564-1616) e Cervantes (1547-1616), faz alguns comentários pertinentes, como o de notar que os livros do soldado têm muito menos batalhas, e as guerras são menos levadas a sério, do que as peças do dramaturgo que nunca esteve em campo de batalha.

Em casos assim, resta sempre a curiosidade de saber se dois escritores dessa estatura, vivendo praticamente no mesmo continente, não teriam ouvido falar na fama do outro, e se interessado para ler algo que o outro escreveu. Acho isso sempre um detalhe importante para um bom biógrafo literário investigar. O que ele lia? O que chamava sua atenção? Quem eram os mais lidos na época dele, pelos amigos, pelos colegas, pelo público-alvo?

A crítica registra que entre o Bardo de Avon e o criador do Cavaleiro da Triste Figura (que em inglês recebe o charmoso apodo de “the Knight of the Doleful Countenance”) o único contato possível pode ter sido (não se sabe ao certo) Shakespeare lendo o Dom Quixote, grande sucesso europeu, traduzido ao inglês por Thomas Shelton em 1612 (a parte I). Houve portanto um período de quatro anos em que o dramaturgo inglês podia tê-lo lido em sua língua. Quanto a Cervantes conhecer suas peças, seria bem menos provável. Eram um sucesso localizado, ao contrário do Quixote, e só séculos depois ganharam o mundo.

Borges tem um viés interessante para essa questão de duas pessoas contemporâneas. Num dos últimos ensaios de Otras Inquisiciones (“Nueva refutación del tiempo”), ele conta, com a maior seriedade:

No princípio de agosto de 1824, o capitão Isidoro Suárez, à frente de um esquadrão de hussardos do Peru, decidiu a vitória de Junín; no princípio de agosto de 1824 De Quincey publicou uma diatribe contra Wilhelm Meister Lehrjahre; esses fatos não foram contemporâneos (agora o são) já que os dois homens morreram, aquele na cidade de Montevidéu, este em Edimburgo, sem saber nada um do outro.
Ou seja, Suárez viveu num universo onde o panfleto de Thomas De Quincey não existia, e provavelmente o próprio De Quincey também. E não é difícil imaginar um mundo em que um poeta romântico inglês não tenha conhecimento da existência de um militar sulamericano. Viveram em mundos isolados, estanques.

O que Borges parece querer dizer é que não basta terem existido materialmente ao mesmo tempo, como sabemos que aconteceu. Seria preciso que de algum modo as idéias de pelo menos um deles influenciasse o pensamento ou as ações do outro. Seria preciso que pudéssemos dizer que houve um mundo em que pelo menos A conhecia a existência de B.  Seria preciso que houvesse um universo mental, pelo menos um, onde eles dois fossem reais.

Não deve ser difícil prolongar esse jogo, imaginar mil pares de eventos desrelacionados num momento histórico qualquer. Em julho de 1930, por exemplo, surgiu um dos mais famosos personagens do romance policial, o detetive Maigret, de Georges Simenon, na novela Pietr-le-Leton. Também em julho de 1930 deu-se o assassinato de João Pessoa por João Dantas, no Recife, no dia 27 daquele mês. Os protagonistas do crime desencadeador da Revolução de 30 teriam alguma informação sobre o livro do então obscuro Simenon? Duvido. Simenon e seu público saberiam do crime da Confeitaria Glória, no longínquo Brasil? Duvido.

Como diria Borges, são fatos contemporâneos agora, que, através de nós, eles começam pela primeira vez a habitar o mesmo universo. Na intuição idealista de Borges (“só é real o que é pensado”) viviam em universos estanques, até que surgiu uma mente capaz de pensar juntas suas duas idéias.