domingo, 21 de fevereiro de 2016

4056) O Tribunal do Facebook (21.2.2016)



Há uma frase clássica, que não sei se é ainda em latim ou já em italiano, que diz: “Cui bono?”. Significa: “Beneficia a quem? A quem favorece? A quem interessa?” Tudo no mundo, no meio das relações sociais, traz vantagens para Fulano ou para Sicrano. Na literatura policial surge de vez em quando essa perguntinha básica. O sr. Fulano dos Anzóis foi morto por pessoa ou pessoas desconhecidas. A quem beneficiou essa morte?

Sempre que uma coisa começa a acontecer repetidamente, com força, com insistência, eu me pergunto: “Cui bono?” Vejam, p. ex., o Tribunal do Facebook. É impressionante como as redes sociais, a de Zuckerberg principalmente, instilam nas pessoas esse espírito tribunalício. Cada um se senta em sua cadeira de mogno, de espaldar alto, vestido de preto, tendo na cabeça aquela ridículas perucas século 17 dos juízes ingleses, com um martelo na mão e uma tropa de guardas de prontidão. Abre o feice e começa a esquadrinhar as postagens, em busca de alguém a quem condenar.

Se você se indigna contra alguma coisa (gays espancados, mulheres assediadas, índios perseguidos, professores demitidos, empregadas exploradas), de nada adianta: o Juiz vai acusá-lo de indignação seletiva, porque denunciar um mal é sempre calar sobre todos os outros. (Toda indignação é seletiva. Não se pode ter conhecimento de todas as injustiças do mundo, nem indignar-se na mesma medida com uma dúzia delas, se forem tudo de que temos conhecimento.)

O tribunal do Facebook está desenvolvendo com uma rapidez impressionante, neste país (em outros também, provavelmente) a nossa capacidade de apontar o dedo, de julgar, de condenar, de castigar. Estamos ficando como aqueles puritanos da Nova Inglaterra que queimavam bruxas. Estamos nos transformando naquelas pessoas que investigam malfeitos e castigam malfeitores, não porque tenham amor e dedicação a algum Bem superior, mas porque amam o castigo em si, amam castigar, amam vigiar e punir. Cui bono? A quem beneficia esse estado de coisas? 

A grande tática dos regimes totalitários em sua fase de ascensão – que é o que parece estar acontecendo aqui – é a de desunir a população, jogar grupo contra grupo, vizinho contra vizinho, cidade contra cidade, região contra região, profissão contra profissão, raça contra raça, fé contra fé. Enquanto nós, os massacrados pela lavagem cerebral, estamos cuspindo baba venenosa uns contra os outros, eles vão construindo seu muro, um tijolinho jurídico por dia, uma parede legislativa por semana. O tribunal do Facebook julga, achincalha, ridiculariza, fofoca, produz mentiras e calúnias compartilhadas aos milhões, entra dia, sai dia. Cui bono?





4055) Queremos a censura (20.2.2016)




(ilustração: Rubem Grilo)


Estão se multiplicando, principalmente nos EUA, os pedidos para que o Estado ou as autoridades locais exerçam algum tipo de censura sobre livros e textos em geral, para proteger a estabilidade emocional nos leitores. Um artigo de Isabel Lucas (aqui: http://tinyurl.com/zuth66b) cita vários exemplos. Obras clássicas como as “Metamorfoses” de Ovídio, a peça “Lisístrata” de Aristófanes e outras são tidas como ofensivas por estudantes conservadores. Eles pedem que os livros sejam eliminados das bibliotecas ou que pelo menos “surjam com uma advertência na capa, chamando a atenção para o ‘perigo’ para o ‘bem-estar mental’ que representam os seus conteúdos, potencialmente causadores de sofrimento, trauma ou angústia’”. Segundo o artigo, humoristas como Jerry Seinfeld estão se recusando a dar espetáculos nas universidades, alegando que os estudantes “não são capazes de suportar uma piada”.

A mania chega a extremos surrealistas. Estudantes de Direito de Harvard pediram que não fosse ensinada a lei sobre estupro, alegando que a visão desta palavra poderia reacender o trauma em estudantes que pudessem ter sido vítimas desse tipo de abuso. (Essa paranoia de negação traz à mente imagens como o avestruz que enterra a cabeça na areia diante do perigo ou o marido traído que manda tirar da sala o sofá onde a traição foi flagrada.) Para a psiquiatra Manuela Correia, “estamos diante de uma excessiva psiquiatrização da sociedade”. Os ditames protetores da psiquiatria tomam o lugar da religião, a quem cabia, até certa época, esse tipo de controle. Isso seria indício de uma infantilização da sociedade, diz ela: uma “sociedade que não consegue lidar com o medo ou a pluralidade da linguagem”.

Se a pessoa é incapaz de suportar a mera visão da palavra “estupro” (tendo sido ou não estuprada), tem todo o direito de evitá-la, é claro. Todo mundo tem fobias ou angústias. Mas nesse caso, por que diabo vai estudar Direito? Não seria melhor estudar algo mais distanciado da realidade social, algo que não a obrigasse a refletir sobre o mundo, a convivência, o atrito ideológico do dia-a-dia? Outro detalhe que inquieta é que para muitos desses espíritos defensivos não basta evitarem os temas, querem que os temas sejam proibidos inclusive para os que não têm trauma nenhum e querem se informar sobre os tais assuntos. É uma regressão emocional perigosa. São pessoas a quem o mundo de hoje assusta (e acreditem, amigos, assusta a todos nós) e preferem fazer de conta que o mundo não existe, preferem refugiar-se numa bolha de segurança fictícia que nem uma ditadura militar seria capaz de manter intacta por muito tempo.