quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

4048) T. S. Eliot e o romance policial (12.2.2016)



É um lugar comum dos estudos críticos sobre o romance policial invocar os nomes ilustres que a ele se dedicaram, que lhe deram uma importância maior do que a que lhes era atribuída pelos críticos de sua época. Nomes como W. H. Auden, Jorge Luís Borges, Vladimir Nabokov, Guimarães Rosa e muitos outros eram leitores atentos de histórias de detetive. A esta lista veio se somar T. S. Eliot. De acordo com um artigo de Paul Grimstad em The New Yorker (http://tinyurl.com/zgsssq5), a publicação de The Complete Prose of T. S. Eliot, pela Johns Hopkins University Press, recuperou um grande número de resenhas que ele publicou anonimamente no jornal The Criterion, em 1927. O sisudo poeta não apenas comenta os livros que lia, como cede à tentação de propor regras para esse tipo de literatura.

Não deixa de ser curiosa a adição do seu nome a essa lista. Eliot era o mais inglês dos norte-americanos. Essa dupla filiação espiritual e literária está presente também em grandes nomes do romance detetivesco, com Raymond Chandler e John Dickson Carr à frente, norte-americanos que viveram na Inglaterra. O fato dos ingleses verem essa literatura com respeito deve pesar. Chandler sempre se queixou de que nos EUA era visto como um simples autor de histórias de detetive, ao passo que na Inglaterra era tratado de igual para igual por romancistas de primeira linha.

Foi Eliot quem considerou The Moonstone (1868) de Wilkie Collins “o primeiro, o mais longo e o melhor romance de detetive inglês”. Para ele, “a personalidade e as motivações do criminoso deveriam ser normais”, e a história não deveria “basear-se nem em fenômenos ocultos nem em descobertas feitas por cientistas solitários”. Eliot, como a maior parte dos bons autores policiais da época, defendia o fair play, ou seja, o autor deveria indicar ao leitor as principais pistas que revelavam a identidade do criminoso e o método usado para praticar o crime. É bom lembrar que na chamada Era de Ouro do romance policial (as décadas de 1920-1930) o enorme sucesso do gênero atraiu para ele autores que não tinham o menor escrúpulo de puxar o tapete de baixo dos pés do leitor da maneira mais desavergonhada possível.

Por que tanto sucesso? Eliot dizia: “Aqueles que viveram antes da criação de termos como ‘literatura elevada’, ‘romances sensacionalistas’ e ‘ficção detetivesca’ sabem que o melodrama exerce uma perene fascinação sobre o público leitor”. Para ele, um romance policial mal sucedido era o que deixava de satisfazer duas necessidades: “o prazer puramente intelectual de Poe e a completude e abundância de vida que há em Wilkie Collins”.








4047) A Vida e os Tempos de Alma Loser (11.2.2016)



Cap. 1 – De como Alma Loser brotou pronta dos pés à cabeça, aos quinze anos, no Colégio Municipal Lima Barreto, em Conceição da Macuruí (Bahia), onde até então estava disfarçada de Maria Almarina da Rocha, filha de um caminhoneiro e de uma doméstica.

Cap. 2 – De como Alma dizia que essa expressão “doméstica” lhe provocava arrepios de repulsa, e que se tivesse que escolher entre a profissão do pai e a da mãe preferiria mil vezes ser caminhoneira, mesmo correndo o risco de assalto e surra de vez em quando, destino eventual do pai dela.

Cap. 3 – De como nome e personagem nasceram juntos quando Maria Almarina resolveu aceitar o convite para tocar baixo na banda feminina “OB Usado”, arregimentada para participar da festa dos Jogos Estudantis da escola, sob o nome de Las Bambas, é claro, porque o nome oficial enfartaria a diretora, uma chata.

Cap. 4 – De como uma vaia ensurdecedora afugentou do palco a banda, e Alma Loser rasgou furiosa o figurino, arrombou um locker, fugiu com o moleton de alguém e nunca mais a viram, nem no Lima Barreto nem em casa, onde ficou o casal de velhos, que mal deram pela sua falta.

Cap. 5 – De como na capital Alma Loser aprendeu russo com um vizinho de pensão, ascensorista de um hotel todo em ébanos e dourados.

Cap. 6 – De como Alma Loser perdeu vários empregos sucessivos até descobrir que russo no currículo queimava seu filme.

Cap. 7 – De como Alma Loser cruzou por acaso com um primo distante e machista, daqueles que sempre botaram olho ruim pra cima dela, mas família é família, mas como ela agora não era mais família coisa nenhuma, pensou ele, botando um olho bonito, ela ia ver o que é bom pra tosse.

Cap. 8 – De como as coisas não correram bem assim, e Alma Loser aplicou-lhe uma combinação de krav-magá que aprendera com o útil ascensorista e o deixou desacordado para pagar na manhã seguinte os estragos que fizeram na suite do motel.

Cap. 9 – De como Alma Loser juntou as economias, tomou um banho de loja, prendeu o cabelo, e foi admitida como flight attendant (ela detestava “aeromoça”) numa companhia aérea terceirizada.

Cap. 10 – De como um ano e meio depois ela desembarcou em São Petersburgo, seu objetivo desde o início, e lá mesmo queimou o passaporte e caiu na clandestinidade.


Cap. 11 – De como encontramos Alma Loser onze anos depois em Moscou, dona de butique, passaporte ucraniano, gorda como uma baronesa, falando francês, amante de dois políticos de partidos rivais, sendo entrevistada num talk-show da TV local e, indagada sobre o sonho da sua vida, dando um fundo suspiro e respondendo: “Conhecer o Brasil, porque dizem que é um país de homens lindos.”





4046) A palavra "hardboiled" (10.2.2016)



Esse termo indica os detetives durões do romance policial, mas não traduz bem para o português. A idéia se refere a ovos muito cozidos, que ficam muito duros. Passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza) e de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida. Aqueles detetives de sobretudo e chapéu mole interpretados por Robert Mitchum, ou então os policiais durões e silenciosos de Richard Widmark.

O detetive não é “hardboiled” somente porque pode recorrer à violência. Isso Sherlock Holmes também fazia. A diferença entre os dois é que Holmes, tido como tão frio e objetivo, é no fundo um romântico que acredita na Razão e um otimista que tem fé na Ciência.  Um detetive hardboiled não acredita sequer na autenticidade da nota de vinte que uma loura artificial lhe estende. É o cinismo que os separa. O Zeigeist da era do “sendo assim fica permitido tudo, cada um por si”.

Philip Marlowe é durão, mas não somente por dar uns safanões em bandidos metidos a besta. Ele vive com a vida por um fio, e só tem de poderoso para protegê-lo a letra da Lei. A mesma lei que ele atropela, quando, pelo bem do cliente, ele suprime provas, mexe na cena do crime, confunde indícios, omite informações. Ele sabe que pisa terreno minado, e os policiais sabem do que ele anda fazendo.  Só querem uma chance para flagrá-lo, a pretexto de uma tecnicalidade qualquer, e depois fazê-lo cumprir uma turnê de insônias ao longo de mil delegacias, enquanto puderem fazê-lo de modo quase legal.

É um personagem que vive num mundo pior do que o nosso, pois nele acontecem coisas que não fazem parte do nosso dia a dia, razão pela qual lemos esses livros, vemos TV, compramos jornais sensacionalistas. Em O Longo Adeus, diz Marlowe:

“A outra parte de mim queria ir embora e ficar longe, mas essa era a parte a quem eu nunca dava ouvidos.  Porque se alguma vez eu a tivesse ouvido eu teria ficado na cidade onde nasci e trabalhado no armazém local e casado com a filha do patrão e tido cinco filhos e lido para eles os balões dos quadrinhos nos jornais das manhãs de domingo e dado uns tapas num e noutro que saíssem da linha e teria entrado em querelas com a esposa sobre quanto seria a mesada de cada um e quais os programas que eles tinham licença de assistir no rádio e na TV.  Eu podia até ter ficado rico, um interiorano rico, numa casa de oito quartos, dois carros na garagem, frango todo domingo e as Seleções do Reader’s Digest na mesa da sala, a esposa com o cabelo duro de permanente e eu com um cérebro igual a uma saca de cimento Portland.  Pode ficar pra você, amigo. Eu quero a cidade grande, sórdida, maculada e corrompida.”