sábado, 9 de janeiro de 2016

4020) A Língua Portuguesa (10.1.2016)



Existe uma oposição, que acho equivocada, entre linguagem coloquial e norma culta. Oposição que no Brasil (talvez em outros lugares também) ganhou um viés de marca de classe. Ser de classe superior é ser capaz de usar uma linguagem culta, gramaticalmente impecável, para demonstrar estudo. Gramática, ortografia, pronúncia e vocabulário são crachás necessários na subida da pirâmide social. É bom, é ruim, é certo, é errado? Não sei, o debate está em aberto, sempre acho melhor saber das coisas do que ignorar. Não se organiza essas coisas por decreto, e o fato é que aqui funciona assim.

Vem daí esse sintoma linguístico das pessoas usarem palavras de fora da linguagem comum quando querem alegar superioridade social e moral sobre os outros. Quando um político precisa afirmar em público que é um homem honesto, estas palavras (tão humanas, tão honestas!) não lhe bastam. Dizer isso qualquer pé-rapado pode! Ele precisa dizer que é um “cidadão de reputação ilibada”, e com esse vocabulário acredita estar colocando em xeque pelo menos dois terços dos que o criticam. Falar assim é como dizer: “Eu estou de terno e gravata. E você? Jeans e havaianas? Rá-rá-rá.”

A história da língua brasileira é a história de uma progressiva desternoegravatização da fala, do abandono de uma língua engessada, protocolar, em favor de uma língua mais flexível, solta, aberta para novidades, capaz de reproduzir o sentimento e a personalidade do falante em cada momento. Me espanta saber que ainda hoje existe quem ache errado usar pronome oblíquo em começo de frase. E impressiona constatar que cem anos atrás Lima Barreto já escrevia como escrevemos hoje, e que as academias literárias de hoje estão repletas de seguidores de Coelho Neto - no que Coelho Neto, grande escritor, tinha de pior: a pompa ornamental da prosa.

Isto não quer dizer que todo mundo deva falar como os personagens de Adoniran Barbosa ou de Patativa do Assaré, mas que uma língua madura e saudável é capaz de acolher essas variantes sem que seu núcleo desmorone. E o núcleo da língua não é o juridiquês insuportável do editorialismo político e classista de nossa imprensa. O núcleo é Camões e é Machado, é o Padre Vieira e o cachaceiro Gregório de Matos, é Oswald de Andrade e seu aparente antípoda Fernando Pessoa. E são também (olha o pulo de susto!) os letristas da música popular, que muitas vezes dominam a gramática e o vernáculo melhor do que muitos medalhões. Melhor do que muitos beletristas que se dão ares mas não sobreviveriam na palavra impressa sem a proteção invisível da força-tarefa de revisores que caminha atrás deles, limpando os erros que deixam cair pelo caminho.