quarta-feira, 19 de outubro de 2016

4172) A injustiça dos prêmios (19.10.2016)





Carlos Drummond tem um verso que eu acho ótimo, quando ele diz que o que queria de verdade era “o fim sem a injustiça dos prêmios”.

Todo prêmio é injusto? Sim, sempre, para alguém, de algum ângulo, por algum pretexto ou motivo. Todo prêmio subjetivo (alguém gostou mais de A do que de B) pode ser questionado assim.

Prêmios esportivos tentam fugir à subjetividade. São atribuídos valores numéricos a performances individuais, quantificando-as de acordo com algum método que todos compartilhem. Isso produz uma mentalidade de crença de que numa disputa de qualidade existe um critério capaz de fazer a definição pender de forma indiscutível, irrecorrível, para um dos dois lados. Ganhar no basquete por 147x146 ou na corrida por 3 centésimos de segundo é algo nítido. Equivale (sempre: essa é a raiz do esporte) a ganhar de 1 a zero.

Prêmios literários são subjetivos. São conferidos por um júri de leitores que se supõe qualificados para avaliar uma obra. Não existe um ranking numérico de qualidade literária, e no dia em que houver eu me suicido.

O Nobel é um prêmio para um conjunto de obra, pelo que sempre entendi. Isso significa avaliar a carreira completa de uma dúzia de nomes (acho que isso varia a cada ano), no mundo inteiro.

O problema não é que a escolha seja subjetiva, que ela reflita opiniões pessoais, venetas, preconceitos. O problema é que quem concede um prêmio como o Nobel, por exemplo, precisaria talvez ter a respeito de cada concorrente “um iceberg, não, uma Antártida de informação”, como dizia William Gibson.

Tem política envolvida? Tem, né? Qualquer coisa dentro do radar da imprensa internacional e que conceda prêmios de mais de um milhão de alguma coisa tem política.  No caso do Nobel há dois ângulos diferentes disso: o jogo das preferências ideológicas (esquerda, direita, etc.) de cada autor e de cada jurado, e as maquinações políticas específicas da disputa e da concessão da “láurea”, as pressões, recados, ameaças, promessas. Existe política no Nobel e existe política na escolha das menções honrosas no concurso de poesia de uma escola dominical em Conceição do Mapinguari.

Na casa dos meus pais tinha uma dúzia de volumes daquela coleção Prêmio Nobel,  exemplo de resistência nas salas de visitas e estantes escolares do Brasil inteiro. Doze autores cujos nomes aprendi naquelas lombadas: Bjornstjerne Bjornson, Theodor Mommsen, Sully Prudhomme, Frederic Mistral, José Etchegaray... 

Li algum? Consegui ler dois: O Pássaro Azul, a peça-poema de Maurice Maenterlinck, que eu descobri recentemente ser cunhado de um dos meus autores favoritos naquela mesma época, Maurice Leblanc; e A Luz Que Se Apagou de Rudyard Kipling, do qual eu já conhecia Mowgli, o Menino Lobo (The Jungle Book), pela Coleção Terramarear, e o famoso poema “Se...” (“If...”), do qual meu pai tinha um vinil, na voz de Rodolfo Mayer.

Comigo, o Nobel ficou associado desde cedo ao que a imprensa já transformou em carimbo: nome impronunciável e obra ininteligível. Sempre tenho um susto quando descubro que o ganhador é alguém como Saramago ou Vargas Llosa. Quando anunciaram Dario Fo, foi a minha vez (antecipada) de achar que era pegadinha.

Prêmios têm valor?  Para mim, sim, porque eu sou primeiro que tudo um leitor, um leitor que escreve.  (Gosto muito de escrever, mas de ler gosto mais ainda. Pela singela razão de que posso ler o mundo de todo mundo, mas pra escrever só escrevo o meu.)  

Prêmio é spotlight.  Como leitor, no meu tempo de estudante, eu acompanhava na imprensa todos os prêmios. Nos anos 1970 houve expansão da imprensa alternativa, das coleções populares, dos tablóides de oposição, das antologias, e também dos concursos literários. Foi assim que Rubem Fonseca (que já era autor publicado e maduro) surgiu no radar de todo mundo, ao ganhar o Prêmio do Paraná, o maior do país, com “Lúcia McCartney” (1969).

Os leitores correm atrás, os livreiros, os editores: para todos esses é importante. Seria uma injustiça se não fosse também para o “galardoado”.

Eu já me inscrevi, já perdi deadline, gastei pequenas extravagâncias com postagens de pacotes, já perdi onde tinha certeza, já ganhei quando não esperava, já perdi sem me abalar, já ganhei sem merecer.

Prêmio só deve ter importância quando a gente ganha. Mesmo quando é preciso preparar inscrições, enviar originais, etc., o melhor é fazer isso e esquecer. Quando ganha, você vai lá satisfeito e agradece. Mas é como bilhete de loteria. Por enquanto, a gente compra, guarda... e “esquece”.

O folclore e o cerimonial em torno do Nobel são irresistíveis para a cultura popularesca.

Um retrato literário que me vem à lembrança é um velho professor sueco, jurado do Nobel de Literatura, com quem se abrem as primeiras páginas do romance The Prize (1966) de Irving Wallace, um thriller de espionagem em torno de um escritor norte-americano que vai a Estocolmo para receber o Nobel de Literatura e se envolve numa intriga internacional, cheia de tentativas de assassinato e de perseguições.

Foi filmado, claro. Criminosos Não Merecem Prêmio (1963) foi o título brasileiro do filme, dirigido por Mark Robson e tendo Paul Newman no clichê de Andrew Craig, o escritor beberrão  e conquistador (uma espécie de Norman Mailer ou Bukovsky), que confessa à imprensa sueca (enquanto azara sua cicerone estatal, Elke Sommer) estar sobrevivendo graças a contos policiais em revistas de pulp fiction.

O filme de Robson aparece de vez em quando naquelas listas tipo “Os Dez Melhores Filmes Hitchcockianos Não Dirigidos Por Hitchcock”.  Tem cenas que parecem tiradas de North by Northwest (Intriga Internacional, 1959), certamente por ter o mesmo roteirista, Ernest Lehman. Por outro lado, deve ter concorrido para que logo depois Paul Newman fizesse um papel muito semelhante, como o cientista atômico dos EUA numa suspeita visita à Alemanha Oriental, em Torn Curtain (Cortina Rasgada, 1966) de Hitchcock em pessoa.

Uma das cerimônias do Nobel mais ominosas que o cinema já mostrou foi a de A Beautiful Mind (Uma Mente Brilhante): nela, o matemático John Nash (Russell Crowe) recebe o Nobel de Economia quando está em pleno tratamento de esquizofrenia. Lá nos salões suecos, ele avista de longe os personagens de sua alucinação, contidos mas presentes.

Prêmio de literatura é bingo, é víspora, é loteria, é algo que cai do céu. As coisas que caem do céu independem de estarmos pensando nelas ou não. Melhor ir escrever o próximo livro.

O melhor comentário sobre o Nobel para Bob Dylan foi de Leonard Cohen: “É como pregar no Everest uma medalha de ‘maior do mundo’”.








3 comentários:

Paulo Rafael disse...

Por que uma cerimônia ominosa? Abominável, execrável? Ora, se o personagem tem alucinações, a cena cabe no filme.
Quanto ao comentário de Cohen sobre Dylan, preferi o Murakami, que foi algo mais ou menos assim: 'jogar pela janela os discos de Dylan e sair para tomar uma cerveja gelada". Pode parecer despeito, mas para mim foi ótimo, pois achei uma bobagem darem um prêmio de literatura para um músico. Agora, como sugeriu Ruy Castro, podem dar o Grammy para um escritor qualquer. Pode ser até um escritor de segunda linha, como eu. ;)

Braulio Tavares disse...

Acho que o prêmio não foi para o músico e sim para o poeta, Paulo Rafael. Justíssimo, aliás.

Braulio Tavares disse...

E o termo "ominosa" eu usei no sentido de "ameaçadora, terrível.". :-)