sexta-feira, 10 de junho de 2016

4123) A importância de uma boa história (10.6.2016)





(ilustração: Alesha Sivartha)

Uma pessoa acostumada a ler histórias, que as lê com certa frequência, que se diverte (ou se emociona, ou se distrai, ou se inspira, etc.) com elas, fará algum esforço para seguir uma história até o fim, se existir algo ali que lhe desperte interesse e que lhe dê a sensação de que ir até o fim vai valer a pena.

Se naquele conto (ou romance, ou filme, ou peça teatral, etc.) houver uma história que desperte a curiosidade, a atenção, o envolvimento do leitor, ele próprio se encarregará de produzir reservas de paciência. Ele dará um crédito de confiança ao autor quando este quiser exibir floreios estilísticos, discursos ideológicos, propostas vanguardistas, ou o que for. Se a história for interessante, o leitor vai em frente.

Um livro é como uma lâmina dágua onde de meio em meio metro aparece uma pedra confiável, formando uma trilha. A pessoa pula de pedra em pedra, confiando que não vai faltar logo adiante uma nova pedra onde possa pular com segurança. Uma história precisa fornecer essas pedras.

Uma relativa esperteza de James Joyce (cujo senso de marketing, imagino, era tão hipertrofiado e bizarro quanto sua prosa) foi ter usado o Ulisses de Homero como escada, como grade, como meta-mapa para que os pobres leitores não se perdessem. Já se disse que a Odisséia é somente a história de um homem querendo voltar para casa depois do trabalho. Não sei se a frase é anterior ou não a Joyce, mas o fato é que o Ulisses dele era literalmente isso, era o sr. Bloom querendo cumprir as estações da sua cruz, para poder novamente adentrar o tálamo conjugal.

Muito pouca gente deve pegar o Ulisses de Joyce para ler sem saber de seu parentesco com a Odisséia de Homero. Sabendo que a história-por-trás-da-história existe, e é facilmente acessível, muitos leitores dedicam-se a compará-las e isto já lhes basta como incentivo para ler. Outros lerão em busca dos episódios de cunho fescenino, ou da linguagem desabrida. Outros pelos trocadilhos, que é só o que tem. Muitos, pela obrigação de ler e a culpa de não estar gostando.

O Catatau de Leminski parece à primeira vista um fluxo comentativo, não narrativo, mas os estudiosos percebem nele um fio de narrativa projetando o filósofo René Descartes no Brasil Holandês, em pleno delírio tropical. Ninguém (a não ser críticos especializados) lê o Catatau em busca de história. O que tem de história, que é bem pouquinho, não seduzirá jamais o leitor comum. Eu, pelo menos, o leio em busca de pepitas, em busca de frases, rimas, trocadilhos, alusões clivadas ao meio, pastiches, referências sagradas e profanas.

O ideal seria que um livro (qualquer narrativa) fosse lido no cru, sem opinião ou informação prévia. Uma leitura a partir do zero. Num caso assim, o autor fica com muito mais saldo junto a esse leitor se lhe fornecer o caminho-das-pedras do “q q tá contesseno”, como se diz na web. Faça o vanguardismo que quiser, mude as palavras que estão em tom maior para tom menor, escreva fosforescente ou em 4D: mas conte uma história ao leitor. É uma concessão tão pequena! Contar uma história ao leitor não é um pecado, assim como não o é compor uma melodia bonita. Tem muito leitor que só precisa de um álibi pra embarcar numa história.

Uma história é uma espécie de sintaxe, de sistema mimetizador das nossas experiências e expectativas. Se a maneira como os episódios se sucedem têm alguma lógica, o leitor aceitará uma total falta de lógica de algum outro lado. Se eu digo: “Todos os ontoratismos são mutérios; todos os mutérios são fardioplasmas; e todo fardioplasma é mull, portanto os ontoratismos são mulls.” Esse trecho faz sentido como um conjunto, mesmo que as partes que o compõem sejam indecifráveis. O que o sustenta como texto é a presença de termos de funções bem nítidas, como todo, ser, portanto, etc. O resto pode ser qualquer coisa. O caos só acontece quando não há sintaxe e não há desenvolvimento de uma idéia. Se eu digo: “Cataplasma justo tição mesa mesa alegre bambu fugir”, cada palavra isolada parece ter um significado óbvio, mas o conjunto não faz sentido.

Deve haver muito mais leitores em busca de histórias do que escritores que se dedicam a contá-las. Claro que a vontade não é tudo, querer não é sinônimo de conseguir. Claro, também, que não basta uma boa história para garantir a adesão do leitor, se o autor escreve mal, os personagens são banais, as situações são uma coleção de clichês. O bom leitor espera outras coisas além de um bom enredo. Mas uma história onde vários acontecimentos se desenrolam no tempo é a melhor das iscas para fazer o leitor querer saber o que vai acontecer em seguida. Se não fosse assim, se não houvesse uma história interessante sendo contada, ninguém leria catataus como a série Harry Potter, a série Uma Canção de Gelo e Fogo, nem Grande Sertão: Veredas, Moby Dick, Em busca do tempo perdido, Os detetives selvagens, Cem anos de solidão, Crime e castigo.

 

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