domingo, 8 de maio de 2016

4111) A peleja de Romano com Inácio (8.5.2016)





(Patos-PB: o beco ao lado da Igreja da Conceição, construída em 1773, local da famosa peleja)


O primeiro relato que li sobre a famosa cantoria a desafio entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira foi o de Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores (1937), que já li em edição moderna, de bolso, por volta de 1971. Cascudo diz que a peleja aconteceu em 1870, e foi este o ano que me ficou na memória. Fui checar agora em F. Coutinho Filho, Violas e Repentes (1953), e este, num capítulo mais rico de informações do que o de Cascudo, inclusive transcrevendo diferentes versões de várias estrofes, diz que a peleja aconteceu em 1874.

Estive recentemente em Patos, a “Morada do Sol” paraibana, para fazer uma palestra pela Fundação Ernâni Satyro, graças a Geralda Medeiros de Lacerda, Biu do Xadrez e Wandecy Medeiros. Foi em Patos que a famosa peleja aconteceu. Coutinho Filho relata não só a cantoria como a sua grande repercussão. Pessoas já vieram me perguntar se nesse desafio tão famoso eles tinham mesmo cantado sem parar durante três dias, como rezam algumas lendas. Eu penso que o mais provável seria os dois cantadores terem se enfrentado em três noites sucessivas. Seriam três encontros, não um só. Não era uma maratona. Seria mais como certas festas que o cara vai pra casa, dorme um pouco, e quando volta a festa recomeça. Já fui muitas festas assim. (Cantoria não.)

Essa peleja é emblemática por envolver um branco letrado e um negro escravo, que foi depois alforriado. (Outra peleja que tem um perfil ligeiramente diferente, mas também tem semelhanças, é a do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, que uns dizem ter sido tão imaginária quando a de Athayde com Raimundo Pelado.) As diferentes versões fazem a balança pender para um ou para o outro. O desfecho mais famoso é aquele em que Romano joga sobre Inácio uma estrofe repleta de mitologia grega, fazendo-o encostar o pandeiro e confessar que não podia acompanhá-lo naquele campo. Há um texto de Graciliano Ramos onde ele conta a história da peleja, irrita-se com o truque de Romano e declara Inácio vencedor.

Romano ganhou a cantoria assim:

Latona, Cibele, Réia, 
Íris, Vulcano, Netuno, 
Minerva, Diana, Juno, 
Anfitrite, Androcéia, 
Vênus, Climene, Amaltéia, 
Plutão, Mercúrio, Teseu, 
Júpiter, Zoilo, Perseu, 
Apolo, Ceres, Pandora! 
Inácio, desata agora 
o nó que Romano deu! 


A mitologia de Romano era mais uma mitologia de charadista e de leitor de almanaques do que a de helenista. O importante nessas estrofes nem é o assunto, é a técnica de usar a cadência e a rima para produzir esquemas mnemônicos de repetição improvisada.

Átila Almeida e José Alves Sobrinho, no seu Dicionário Bio-bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada (1978) reitera a data de 1874 mas não deixa muito mais coisa inteira: “Das pelejas havida[s] entre os dois grandes cantadores, por volta de 1874, há tantas e tão enfeitadas versões que da variedade só se pode concluir pela falsidade de todas. (...) Catingueira, escravo e analfabeto, devia ser um talento para elevar-se ou ser elevado à altura de disputar com Romano, mas nunca poderia ter levado vantagem nesse embate. Romano além de igualmente talentoso tinha mais recursos para explorar. Nas comparações que têm sido feitas dos dois poetas nunca foi dito que Romano poderia ser, talvez, o maior admirador de Inácio, quem o promovia.”

Mal comparando, uma peleja como essa estaria para a Cantoria assim como o duelo do OK Corral está para o faroeste. Uma cantoria, ou uma lenda, ou uma história de extraordinário enredo, pode sofrer mil versões ou variantes. Confrontar versões sempre foi comum entre pessoas que colecionam versos. Faz parte do ofício. Ninguém decora uma cantoria inteira, com a possível exceção de Zé de Cazuza.

Assim como os próprios mitos, assim como a história dos próprios personagens mitológicos citados por Romano, a peleja acabou tendo numerosas versões esfarrapadas que, superpostas umas às outras, recompõem uma cantoria meio documental, meio fictícia. Na mitologia, cada narrativa do mito cobre alguma área não coberta pelas versões já conhecidas. Todas vão se superpondo.  Seria um desafio interessante fazer um livrinho, uma edição comentada, com um apanhado do maior número possível de versões da peleja entre Inácio e Romano, tentando engastá-las todas numa mesma estrutura. Uma versão de soma e de síntese, por assim dizer.

O verso de mitologia de Romano é meio que um travalíngua voltado contra ele próprio, mas em todo caso é uma bigorna poética na cabeça do contendor. Há quem critique os cantadores enciclopedistas, dessa estirpe que Romano representou em sua época e Ivanildo Vila Nova na minha. Poemas enumerativos podem às vezes não ter muita beleza poética, mas aquelas enormes estrofes enumerativas de peixes ou de bichos que tem nos folhetos de Costa Leite, e de outros, tem menos um propósito estético do que um jogo lúdico de memória e de articulação no canto:

Temos voador, olhete e tunimba 
enxova, corvinho, tabá, sirigado, 
cacholote, robalo, salema e dourado, 
pirapitinga, cangula e sardinha 
sanhauá, camorim, galo e tainha, 
tintureira é um peixe, preciso rimar, 
o peixe canguito não posso deixar 
camurupim, aniquinho, albacora, 
tira-vida, guaiabira e garacimbora 
são peixes que vivem nas águas do mar.

(José Costa Leite, Peleja de José Costa com Poetisa Baiana).

Ou essas estrofes intercaladas de Manoel Camilo dos Santos: 

I – Amaro, Augusto, Adriano, 
Ambrósio, Alonso, Agripino, 
Anastácio, Ageu, Alípio, 
Abel, Aleixo, Avelino, 
Antero, Alfeu, Ananias, 
Abílio, Antonio, Adelino. 

C – Breno, Bruno, Belarmino, 
Bento, Brito, Belisardo, 
Berchior, Braz, Benevides, 
Bertoldo, Belo, Bernardo, 
Bival, Boanerges, Berto, 
Balila, Brandão, Bivardo.
(Manoel Camilo dos Santos, A Grande Peleja de Ivanildo Vila Nova com Manoel Camilo dos Santos).

E um exemplo de um folheto do próprio Ivanildo Vila Nova, um dos expoentes desta técnica: 

Um elogio geral 
aos craques do passado: 
Pavão, Bolão, Juvenal, 
Danilo, Heleno, Machado, 
Ávila, Barbosa, Ademir, 
Zizinho, Chico, Jair, 
Friaça, Biguá e Bria; 
Leônidas, Noronha e Tim 
Patesco, Pedro Amorim, 
Galo e Domingos da Guia. 

(Ivanildo Vila Nova, O futebol através dos tempos)

Os versos enumerativos se tornam um cântico cuja função é de sagrar, salvar os seres registrando-os pela palavra, pelos seus nomes. Como Bispo do Rosário resgatava cada coisa em sua Enciclopédia do Apocalipse envolvendo-a em fio azulado, o poeta resgata cada matinho de beira de estrada ou cada qualidade de caça que ele enumera. Enquanto o nome daquele peixe for repetido por alguém cantando decorado aqueles galopes, é quase como se o peixe mesmo tivesse continuado a existir. 

São poemas que tem uma utilidade etnográfica, também. Como as songlines dos aborígenes da Austrália, poemas geográficos intermináveis descrevendo cada pedra, cada rochedo, cada riacho, cada arvoredo, cada lugar. São usados como mapas verbais, para que as pessoas, repetindo-os, não se percam.

Tudo isso não terá começado com esse verso específico de Romano, é claro. Mesmo ainda àquela altura, já devia haver uma fartura de exemplos. Esse tipo de balaio ou verso pronto está no cerne da poesia popular, não tem nada a ver com ser repente ou não. É como as enumerações bélicas de Homero na Ilíada ou os microcatálogos zoobotânicos de Guimarães Rosa em “Cara de Bronze”, “O Burrinho Pedrês”, etc. A mera repetição de nomes, sem nenhum nexo sintático entre eles, uma mera lista crua nome a nome, acaba ganhando um valor muito mais sonoro do que denotativo. Vira uma litania, uma latomia, um mantra, com uma sonoridade talvez próxima da sonoridade primitiva da língua geral, o nheengatu, que tanta gente neste Brasil véio já falou. 


No meu livro Os Martelos de Trupizupe (Natal, Engenho de Arte, 2004) incluí algumas estrofes de um trabalho meu, um desafio onde os dois cantadores terminam suas estrofes, respectivamente, com os motes: “Cantador tem que ser analfabeto” e “Cantador tem direito a estudar”. São duas correntes sociais poderosas dentro da poesia popular. Poderíamos dizer que Romano, branco, culto, empunhando uma viola, produziu o arquétipo do atual cantador; e que Inácio, negro, humilde, empunhando um pandeiro, tornou-se um arquétipo para os nossos emboladores de coco. O talento é o mesmo. Os caminhos da História é que são diferentes.




3 comentários:

Josie disse...

Bela aula, meu mestre! Sempre um prazer ler Mundo Fantasmo!
abraços

Ítalo M. R. Guedes disse...

Caro Braulio, como sempre um belo texto. Gostei da foto, que me traz uma nostalgia por minha cidade natal de onde há muito migrei. O beco ao lado da igreja além de ser famoso pelo duelo, para mim é também triste, por ter sido onde morreu atropelado meu avô materno. Mas fiquei também feliz por ter encontrado aqui no Mundo Fantasmo, que acompanho desde o começo, o nome saudoso de meu velho amigo e colega Biu Xadrez. Pergunto-me se a Geralda Medeiros de Lacerda não seria a professora Geralda de Medeiros Nóbrega, grande intelectual patoense.

Petró.´. disse...

Chacoteada, desrespeitada, tratada como poesia de pobre e analfabeto, a arte popular nordestina hoje mostra que a perseverança, a inteligência e a garra dos trovadores e poetas populares em geral, é sublime e de muita sabedoria. Hoje, nas universidades é estudada com muito zelo. Muitas teses de mestrado e doutorado têm sido feitas em cordel ou abordando o cordel. Minha monografia do curso Ciências das Religiões (UFPB) teve como título "O Cordel no Ensino Religioso na Sala de Aulas". É uma prova de que a arte popular viverá para sempre.