terça-feira, 3 de maio de 2016

4110) Fala, Gabí (3.5.2016)



(Gabí e Kátia)

Tem morrido gente que não morrerá nunca. Neste fim de semana foi meu mestre Gabí, Gabimar, irmão de Ogírio Cavalcanti, os dois comandando musicalmente um dos conjuntos de baile mais sólidos e mais longevos do Nordeste. O “Conjunto de Ogírio” tocava qualquer música nova que fosse aparecendo, tocava nas grandes festas, caía em turnê nos meses de festejos. De bailes de debutantes a tertúlias, de manhã-de-sol a jantar-dançante, com guitarras, vocais, sopros, percussão e o teclado de Gabí.

Gabí era instrumentista, compunha, arranjava, tinha curiosidade pela música como um enxadrista tem pelo xadrez. Ele era cego, e Ogírio, no tempo em que os conheci, também já tinha a vista prejudicada. O ouvido de Gabí era uma coisa que espantava a todos nós, violonistas com menos de vinte anos, que íamos pedir-lhe que “tirasse as músicas” pra gente. Gabí botava o disco, pegava o violão, e quando o tom não estava já igualado, ao invés de mexer nas tarraxas ele tinha um mecanismo que ralentava ou acelerava o picape; ele afinava o elepê pelo violão.

Nossa banda era Os Sebomatos, e os dois irmãos, Ogírio principalmente, nos chamavam mangando “Os Sabonetes”. Gabí, inclusive, tocou na banda antes de mim. Na primeira vez em que eu vi os Sebomatos foi antes de uma sessão dos Beatles no Capitólio. Eram Sérgio, Bolívar e Marcelo tocando e cantando, e Gabí acompanhando no teclado. (deveriam ser então Os Sebomagas, para os mais puristas, depois que ele substituiu Toninho, e Sebomabras depois que eu entrei). Não deve ter muitos cantores em Campina Grande que não foram acompanhados por ele num estúdio ou num palco.

Uma vez, durante uma tarde, ela passou quase todas as músicas do Sgt. Pepper’s para a gente. Como ninguém sabia notação nem cifra, a gente se valia da memória visual e da lógica interna da música para lembrar depois os acordes, quando chegava em casa e podia ficar praticando. Era difícil às vezes aprender os acordes dele, porque ele tocando assim descontraidamente fazia com a mão esquerda apenas as notas que ia tocar, não o acorde inteiro, mas aí se lembrava que estava demonstrando para a gente e formava os acordes corretos, chamando a atenção para as passagens.

Anos depois Ogírio me contratou para ensinar o trumpetista Crisaldo, o grande “Galinha”, a cantar em inglês músicas como “25 or 6 to 4” do Chicago Transit Authority. Minha tarefa era tirar as letras, escrever uma versão fonética e passar com ele, o que era sempre uma grande gréia. Lembro da casa deles quase em frente à Catedral, a sala espaçosa sempre com algum instrumento. Gabi estava em todos os palcos. Uma vez, no Encontro da Nova Consciência, fui vê-lo no camarim antes de um show, cheguei perto: “Fala, Gabi.” Ele reconheceu a voz. Fazia uns dez anos que a gente não se encontrava. Eu me admirava às vezes que ele conhecesse a voz de todo mundo e ele dizia algo como “quando a gente reconhece ajuda bastante.”

Eu via ele e Ogírio os dois mais ou menos como bluesmen americanos, que naquela época eu ainda tinha escutado pouco. Gabí tinha algo de Ray Charles, mas acho que muitas vezes tinha que ser um George Martin. A mulher de Gabí, Kátia, dividia com ele palco, discos, arranjos, gravações com artistas de todo gênero musical. O piano dele e a voz dela, imagino, estão espalhados pelo trabalho de muita gente. 

Existe uma história informal das bandas-de-rock e conjuntos-de-baile de Campina Grande, e uma boa parte dela está no saite “Ritmo Melodia” (http://www.ritmomelodia.mus.br/), ao qual muita gente, inclusive eu, já deu depoimento sobre as bandas de sua época. As bandas de jovens roqueiros estavam destinadas a serem desfeitas dali a alguns vestibulares. Todo mundo ia largando, ia estudar, e as bandas sumiam. O conjunto de Ogírio era um projeto profissional a longo prazo, um esteio do circuito musical da região, formou gerações de músicos, era algo com a resistência temporal e a solidez de uma Orquestra Tabajara. 

O tempo passa, o tempo voa, eu duvido que ainda seja capaz de lembrar do dedilhado de “Sun King” nem do solo de “While my guitar gently weeps” (Abbey Road e o Álbum Branco foram-lhe arrancados aos poucos). Acho que quem é músico de verdade não esquece essas coisas. As pessoas para quem a música é a coisa mais importante, e ao mesmo tempo a coisa que mais lhes dá prazer e que elas conhecem melhor, adquirem uma certa nobreza de príncípios. Existe em alguns verdadeiros músicos uma percepção das harmonias e desarmonias que existem no mundo. Artes, crafts, habilidades podem criar uma solidariedade de espírito entre as pessoas, mesmo que sejam de diferentes credos ou persuasões. Um bom músico é alguém que percebe, transcria e reproduz os vais e vens da vida, as ondas, as ascensões e as quedas, a dinâmica da contenção e do estouro, as delicadezas acústicas e o ribombo high-tech. A música pode nos provocar as mais massacrantes emoções, e pode também nos deixar em paz com alguma coisa, sendo paz não importa nem com quê.

O saite Retalhos Históricos de Campina Grande tem neste endereço um material de áudio e fotos sobre a infância de Gabí: (http://cgretalhos.blogspot.com.br/2016/05/memoria-audio-fotografica-gabimar.html#.VyhNbdIrLMo).  













Um comentário:

Unknown disse...

É um grande lamento.
Por coincidência, estava pensando em Gabmar ontem.
Não o conhecia, mas o vi tocar várias vezes ao lado da divina Kátia.
Deixará órfão os que gostam da boa música.