quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

4011) Livros do ano 2 (31.12.2015)



Os dois últimos livros que li em 2015 não poderiam parecer mais diferentes um do outro, mas têm um inquietante detalhe em comum. O penúltimo foi a biografia Trotsky (1986) escrita por Paulo Leminski, e incluída no volume Vida (Ed. Sulina, 1990, ao lado das vidas de Cruz e Sousa, Bashô e Jesus Cristo). O outro, que estou prefaciando para uma reedição da Alfaguara para este ano, foi A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells. O que os dois têm em comum? O terror da fome.

Leminski evoca, com traços rápidos e vigorosos, a devastação produzida na Rússia pela I Guerra Mundial e pela Guerra Civil que se seguiu à Revolução de 1917. Além dos milhões mortos pela guerra, milhões morreram de inanição nas estepes da futura URSS. E Wells descreve o terrível mês subsequente ao desembarque devastador dos marcianos na Inglaterra. O terror de não ter o que comer, e as coisas que as pessoas roem com sofreguidão para não morrerem.

Quando a civilização colapsa, todo mundo continua precisando comer todo dia. Seguem-se saques, arrombamentos, assaltos, a maioria feita por pessoas que jamais colheriam sem autorização uma goiaba na goiabeira do vizinho. Mas a fome transforma todo mundo, primeiro em bandidos, depois em animais. Tal como acontece em Ensaio sobre a Cegueira (1995, lido em maio) de José Saramago, onde a fome é agravada pela cegueira. Saramago lembra Wells inclusive na ausência de nomes próprios nos seus personagens designados por detalhes (o médico, o clérigo, etc). E na lucidez sobre as coisas de que o ser humano é capaz.

Literatura fantástica? Não tanto quanto a terrível fome que devastou a Itália durante a campanha da FEB na II Guerra, descrita por Boris Schnaiderman em Guerra em Surdina (1964; lido em agosto). A fome dos pracinhas ilhados na neve, mas principalmente a fome da população local, e o modo discreto, tocante, como as jovens italianas se entregavam em troca de algumas latas de conservas, diante da família que fazia que não estava vendo. Uma área cinzenta separando sexo livre, estupro e prostituição, descrita de modo compassivo e honesto pelo autor.

Coisa do passado? Nem tanto, se pensarmos nos condôminos do High Rise (1975, lido em novembro), onde a fome e a sede levam aqueles profissionais liberais da Londres afluente do futuro à prostituição, ao crime, ao canibalismo. Se hoje há pessoas capazes de matar por um celular, o que não farão por um pedaço de comida, quando o possível colapso econômico futuro estancar a produção e comercialização de alimentos? Que pai conseguirá evitar a “necessidade de também ser fera”, quando somente as feras serão capazes de alimentar seus filhotes? (Continua)