segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

4003) Como odiar Lovecraft (22.12.2015)



(ilustração: Selin Arisoy)

H. P. Lovecraft foi um dos escritores mais influentes da literatura de horror, que ele misturou com ficção científica para produzir uma espécie de “horror cósmico”. Ele apregoava ser “um homem do século 18 perdido no insuportável século 20”. Criado com certo luxo até os 14 anos, depois teve que se adaptar a uma vida de penúria financeira, doenças na família, um casamento fugaz, daqueles que nunca poderiam ter dado certo. Era em essência um solteirão calado, cheio de venetas, que gostava de dar longos passeios e de ler alfarrábios antigos. E escrevia longas cartas para colegas escritores que, em muitos casos, nunca veio a conhecer.

A cabeça de Lovecraft, esculpida por Gahan Wilson (famoso pelos seus cartuns de humor negro) tornou-se a materialização do World Fantasy Award, um dos principais troféus anuais da literatura fantástica. A lista de quem já ganhou o troféu é enorme, e inclui autores como Fritz Leiber, Gene Wolfe, Tim Powers, Peter Straub e Jack Vance.

Acontece que Lovecraft tinha uma visão muito peculiar a respeito de outras raças, como os negros e os judeus. Seu aristocratismo pomposo exigia esse tipo de esnobismo, e ele parece ter acreditado, como tantos intelectuais brasileiros da mesma época, que a mistura de raças empobreceria ambas. Vai daí que escritores atuais, informados das idéias racistas de HPL, questionaram o uso de sua imagem no troféu. Como se dissessem: “Esse cara é o modelo que devemos seguir?”.

A substituição da estátua foi anunciada na entrega dos prêmios de 2015. Uma reação imediata foi a de S. T. Joshi, biógrafo de Lovecraft, que devolveu os troféus que já tinha ganho e disse ser tudo aquilo “uma concessão covarde ao pior tipo de atitude politicamente correta”. Eu mesmo fiquei pensando: Quem tem razão? Quem acha que HPL por ser grande escritor já está anistiado? Ou quem acha que não, que preconceitos racistas devem ser sempre denunciados e punidos, mesmo que postumamente?

Leio no fanzine eletrônico Ansible (#341, dezembro 2015) o comentário de Dave Langford: “De qualquer maneira, trata-se do adeus do que é largamente considerado o prêmio mais feio concedido na longa e irregular carreira dos prêmios para literatura de gênero.” A visão de Lovecraft sobre a humanidade é que era feia – ele era um misantropo sem generosidade com os que considerava “inferiores”. Apesar dessa deformação, foi também (como tantas vezes acontece) um grande escritor, no sentido de que produziu uma visão do mundo única, vívida, através de imagens que revelam esse mundo ao leitor. O erro talvez tenha sido terem colado sua imagem pessoal a um prêmio que deveria ser algo neutro, sem viés individualista.