sábado, 19 de dezembro de 2015

4002) Seis lendas urbanas (20.12.2015)



(ilustração: Eleonore Weil)

O Homem Sem Cabeça de Badrajupur, na Índia, é uma entidade misteriosa que aparece nas festas e peregrinações populares. É visto seguindo os cortejos, movimentando-se como uma pessoa normal, mas sua cabeça é cortada à altura do pescoço. As pessoas que o tocam são percorridas por uma espécie de choque elétrico suave e têm a sensação de que sua própria cabeça está começando a desaparecer. Ele se aproveita disto para dançar numa clareira da multidão.

Os Ladrões da Lua. Num povoado do Chile é hábito das famílias sentarem na rua nas noites de lua cheia e inventarem histórias que se passam nessa lua sobre suas cabeças. Inventaram a história de um povoado na lua, assaltado por bandidos perigosos. Inventavam cada ladrão mais perigoso do que o outro. Preocupavam-se tanto com as famílias da lua que deixavam suas portas e janelas mal trancadas, para bom proveito dos meliantes de cá.

O Tonel Rolante do Sêrro (MG). Em noites muito silenciosas ouve-se pelas ruas da cidade o ruído de um tonel de metal, oco, sendo empurrado por cima das pedras do calçamento, às vezes descendo uma ladeira com um clangor infernal, às vezes escalando os paralelepípedos devagar e sempre, como que empurrado por mãos vigorosas. Abrem-se as janelas e ninguém vê nada. Fantasma auditivo.

O Brinquedo do Miúdo é um episódio misterioso que se dá em Coimbra e no Algarve. Um miúdo (um menino) aborda um transeunte numa rua escura e pede que devolva o seu brinquedo, que (segundo ele) a pessoa traz no bolso. Em todos os relatos a pessoa mete a mão no bolso e de fato tira de lá o objeto que o menino lhe pedira: uma gaita, um par de óculos, um confeito, um versinho manuscrito, uma bola de gude, um isqueiro, um soco-inglês... E todas as vezes a criança recebe, agradece e some para sempre.

O Carro Que Não Pega. Uma lenda frequente na Ucrânia, na Rússia, na Letônia, e, curiosamente, também no Estado de Sergipe. Um carro fantasma acorda de repente uma vizinhança inteira, com aquele ruído insano, engasgado, de uma ignição que não pega de jeito nenhum, sendo coagida por uma pessoa que não vai desistir com facilidade. Um engasgo torturante, que até parece vai redundar numa explosão, mas não, fica só taxiando. Para quem dirige, é o mesmo que injetar querosene na veia.

A Ponte Fantasma da Kawa-kahihi, no Havaí, é uma ponte que muda de aspecto: é de madeira, ou de pedra em estilo antigo, ou de ferro fundido, de mármore cheio de ornatos... Ela aparece unindo as margens de um rio ou de um desfiladeiro. É uma ponte sempre diferente, mas tão real quanto qualquer outra até o momento em que o viandante encontra-se lá pela metade, quando então ela some no ar.




4001) A roda gigante (19.12.2015)



Ele estava passando uns dias naquele lugar, a serviço. Era uma cidade pequena mas tinha cinema, tinha um teatro com cartazes anunciando show musicais, e tinha um parque de diversões. Chamar aquilo disso era força de expressão. Tudo bastante precário. Brinquedos enormes, mas muito velhos e desgastados. Na segunda noite ele entrou, pensando somente em fazer algumas fotos com o celular, porque havia uns cartazes e uns ângulos interessantes. Comprou ingresso aqui, cerveja ali, puxou conversa. Na bilheteria viu a morena, a quem chamou brincando de Luluza, ao recolher o troco, e ouviu dela uma resposta que o fez dar uma gargalhada e olhar naqueles olhos pela primeira vez.

Voltou na noite seguinte (o trabalho o ocupava das dez até o anoitecer) e retomou o papo com ela numa brecha entre o fim de uma fila e o começo da próxima. Perguntou: “Parquezinho esquisito, hem?  Por que não botam luzes coloridas, como todo mundo?” Ela de olhos baixos, arrumando notas por ordem de valor: “O dono gosta assim. Tudo preto e branco.”  Ele falou: “Que coisa, hem. E você? Gosta mais de preto e branco ou de colorido?”  Para ele era só um puxa-conversa pra não deixar a peteca cair, manter o timing da simpatia. Teria pegado mal para ela?  Que disse: “Eu danço conforme a música, amorzinho,”. Plantou as mãos na bancada, ergueu os olhos para ele, e abriu um sorriso dentifrício. “Eu sou a esposa dele, e danço a música que ele tocar.” “Oooops,” disse ele, gargalhando, “não se ofenda. Não estou achando feio. Torna-se até uma coisa bastante cult.”

Foi quando ele viu o homem descer da roda gigante, e entrar cambaleando num pequeno chalé de madeira ali perto, passando a menos de cinco metros da bilheteria onde estavam. “Lá vai ele,” disse ela. E depois: “Deixou de beber. Agora ele dá uma volta na roda, desce tonto, e escreve.” “Escreve o que?”  “Romance. Vai dizer que nunca ouviu falar de...” Ele anotou o nome, soletradamente. “E como deixaram ele fazer a cabana dele aqui dentro?”, perguntou, e ela: “Ele é o dono do parque. Ninguém vive de literatura neste país. Quando sobrevive, pode pegar uma cerva e comemorar.” Ele entendeu “uma serva”, gargalhou, fez sinal de positivo, legal.

A outra reportagem, a que o levara ali, foi feita, mas logo em seguida ele entregou as fotos e a história (meio dramatizada, e com certa licença poética) do “Eremita High-Tech”. Não, não houve intenção, houve oportunismo. Ele não podia saber que o eremita pularia do alto da roda apenas três dias depois da reportagem.  Deixou a coisa marinando 48 horas e foi apresentar os pêsames à viúva, perguntar se precisava de alguma coisa. “Música, amorzinho, música”.