domingo, 29 de novembro de 2015

3983) O inimigo de fora (28.11.2015)



No sábado era festa de São Gedeão, no domingo as cavalhadas; as festas mais populares ali em Aramoabe, no coração do Curimataú. Pois foi nesse sábado que a notícia caiu como um raio num trono de ferro. Epitacinho do Hotel anunciou ter recebido uma reserva para vinte pessoas, mais equipamentos e bagagens, a partir “de primeiro de março do ano que vem”. Como ainda estavam em junho, o assunto deu o que falar, rendeu mais do que as cavalhadas propriamente ditas, de onde era difícil tirar uma conversa nova. Nem Epitacinho tinha jamais recebido tanta gente numa carrada só como também nem sabia que era possível alguém reservar um hotel com semelhante antecedência.

No domingo, um hóspede atendeu por acaso o telefone do balcão (era de casa, morava no hotel há anos, sem pagar) e chamou Epitacinho: “Ei, Pita, é do Rio de Janeiro, os rapazes que vêm fazer o filme sobre São Gedeão”. Ele talvez tivesse esquecido tudo se Epitacinho não se precipitasse estrepitosamente de lá de dentro, esbarrando em móveis, para arrebatar o fone da mão dele. Bem feito. No outro dia, do renque da cavalhada à roda-gigante não se falava noutra coisa.

Um surto de patriotismo ofendido tomou conta de Aramoabe. Os cariocas estão pensando o que? Que o santo é deles? Na manhã da segunda, câmara de vereadores, clube de diretores lojistas, lideranças religiosas e sindicais, todos se deram as mãos. Epitacinho foi forçado a fornecer o fone de contato que recebera. Ligaram e quem disse estar do outro lado foi um tal de Douglas. Sim, era produtor de cinema. Sim, um filme sobre o santo. O melhor filme brasileiro do ano que vem. Vamos botar Aramoabe no mapa do mundo, das grandes produções internacionais.

Era no viva-voz; Simas de Seu Nô pulou mais para perto e bradou que Aramoabe era citada em duas enciclopédias brasileiras e uma fora, tinha seis agências bancárias e merecia mais respeito. Seguiu-se o que um jornal local, “A Trombeta”, chamou no dia seguinte de “balbúrdia” e o editorialista de “charivari”. Autoridades que usaram do receptor garantiram terem sido ofendidas em sua honra “pelo carioca ixperto”.

Telefonemas febris, um projeto arquivado na secretaria é trazido à luz e assoprado (“só preciso atualizar os valores”, garantiu o jovem e assustado diretor), verba liberada do fundo de perdidos e achados, o poço mais sem fundo da contabilidade. Vetos enérgicos foram telegrafados ao tal Douglas. Em poucos meses, o elenco começava a decorar os papéis, a equipe estava a postos, e Epitacinho, co-produtor-executivo, mandava uma caixa de uísque para o ator carioca que contratara para essa boa ação em nome do cinema brasileiro.