domingo, 15 de novembro de 2015

3972) O artista e o povo (15.11.2015)



(Milton Nascimento)

A toda hora vejo postagens nas redes sociais compartilhando canções de MPB do tipo que eu gosto, deste ano ou de 30 anos atrás.  Ezra Pound dizia que certas obras são novas no instante em que nascem e continuam novas 500 anos depois. São como a água que brota de uma nascente: é aquele filete de líquido, sempre o mesmo e sempre feito de uma água nova que parece ter surgido do nada naquele instante.


E aí começa o chororô. “Não se fazem mais canções como essa hoje em dia.” “Ah, a MPB está decadente.” “A música ruim tomou conta.” “Os compositores brasileiros desaprenderam a fazer grandes canções como A Banda ou Disparada.”  E por aí vai. Pois eu não acho. Acho que grandes canções no formato da MPB tradicional estão sendo compostas e gravadas a cada dia, a cada ano. Como eu viajo muito, me hospedo de vez em quando na casa de amigos, que não são necessariamente músicos, mas têm um gosto musical parente do meu.  Nunca deixo de ficar conhecendo discos de gente que eu nem sabia que existia, com músicas de grande qualidade. Como eu raramente compro CDs hoje em dia (isto é outra questão, que não vou abordar agora) anoto os nomes e títulos para ouvir online.


As músicas existem, o que não existe é um sistema oficial de comércio musical (rádio, TV) fazendo por elas o que fez por A Banda e Disparada. O sistema multiplicou-se por dez em tamanho, já está decadente, mas tornou-se um toma-lá-dá-cá monetário, um aluguel de espaço eletrônico para quem pode pagar mais. E isso não é somente para a “música ruim”. Me lembro que quando Maria Rita lançou seu primeiro CD (aquele que vendeu um milhão de cópias) o Jornal Nacional da Globo deu chamada ao vivo do palco do Canecão. Não lembro de ter visto isso com nenhum outro lançamento de MPB. Fez por que? Porque o disco era bom? Porque era ruim? Não: porque alguém meteu a mão no bolso e pagou uma bela grana. Se todo mundo que compõe as bandas e disparadas de 2015 tivesse essa grana, teria acesso ao mesmo espaço.


Milton Nascimento cantava que “todo artista tem que ir aonde o povo está”. Digo eu que hoje, ironicamente, cabe ao povo ir aonde o artista está, e ele está na Web. O que gostaríamos, meio egoisticamente, era ligar a TV no horário nobre e ver ali as obras-primas da 2015. Não vai ser possível. As obras-primas certamente existem e nada devem às de meio século atrás, mas mesmo aquelas só são consideradas obras-primas pelo impacto que tiveram, não apenas pela sua beleza. Nunca mais terão esse impacto, porque o sistema é cada vez mais mafioso e inacessível. A música que em 1960 brotava na vitrine brota hoje no quintal, e é preciso ir até ela, porque ela não vai mais poder vir até nós.