segunda-feira, 2 de novembro de 2015

3961) Leandro High Tech (3.11.2015)



Dias atrás participei da VI Feira Literária de Boqueirão (Flibo), o principal evento literário da Paraíba, realizado à força de idealismo e de trabalho voluntário numa cidade pequena e sem muitos recursos. Um exemplo para cidades maiores, no Brasil inteiro, que vivem jogando dinheiro fora e queixando-se de que não têm verbas para a cultura. Dividi uma mesa com Astier Basílio, o qual apresentou um notável trabalho de pesquisa sobre a presença de Leandro Gomes de Barros (o homenageado da VI Flibo) na imprensa do seu tempo. Fiquei surpreendido ao ver como Leandro (1865-1918) era uma figura conhecida no Recife da época, publicando poemas nos jornais e sendo citado nas colunas como um tipo popular, pitoresco, de temperamento satírico e bem-humorado, ainda que (segundo os jornalistas) sua poesia fosse rude e tosca, sem obedecer aos “padrões literários” da época. Pior para os padrões da época, porque ninguém os conhece hoje, e a poesia de Leandro está mais viva do que nunca.

Leandro foi um exemplo notável do encontro daquilo que os escritores da ficção científica cyberpunk usaram como definição de seu gênero: “High tech + low life”. Alta tecnologia e baixa classe social. O computador nas mãos de um favelado. Um gravador nas mãos de um índio. Um piano europeu nas mãos de um negro de Nova Orleans. Um microfone e uma caixa de som nas mãos de um cantor de hip-hop do Harlem. As rádios e gravadoras de discos do Rio de Janeiro nas mãos de um sanfoneiro do Exu. A confluência inevitável entre a cultura dos despossuídos e os produtos da transbordante cornucópia de uma tecnologia que produz maravilha atrás de maravilha e as derrama no mercado sem atentar para suas possíveis consequências, e até mesmo sem meios para impedi-las. (Veja-se como a cópia digital afundou a indústria fonográfica.)

No caso de Leandro, foi o encontro das modestas prensas tipográficas manuais, tornadas obsoletas pela invenção do linotipo, com a poesia oral que se agigantou a partir da Serra do Teixeira por volta de 1850 – uma poesia composta no papel mas transmitida de boca em boca, de memória em memória, ou nos famosos “versos de traslado”, copiados com capricho em folhas de papel almaço por pessoas de boa caligrafia.

Leandro cresceu nessa cultura, e ao se transferir para o Recife usou as prensas tipográficas agora obsoletas (mas que para ele eram “alta tecnologia”) para criar o cordel nordestino ao modelo do cordel português, mas já um cordel distinto em temática, em ambientação, em fraseado, em sonoridade. Cada vez que uma tecnologia nova chega às mãos do Povo, os resultados são imprevisíveis, inevitáveis e irreversíveis. Viva Leandro!