terça-feira, 1 de setembro de 2015

3908) O açude secou (2.9.2015)




(foto: Diego Vara)


Fazia mais de trinta anos que não se via uma seca como aquela. O sol torrava tudo, como um bafo de dragão. Os córregos tinham virado sulcos poeirentos cobertos de seixos e de galhos secos de favela. Os calangos corriam doidos, de boca aberta ao vento. Restavam poucos poços, e pessoas vagavam com potes na cabeça, em busca dos restos de água barrenta. 

Dona Mina estava sentada na lateral da casa, pegando sombra, quando viu dois meninos que vinham em toda carreira, levantando pó. Ao chegar perto, pararam e o maior dos dois, meio com medo, disse: “Dona Mina... Mandaram avisar a senhora que acharam ele.” 

E com isso fizeram meia volta e retornaram a toda.

A velha suspirou, coçou as pernas, fez o Pelo-Sinal e entrou. Trocou o camisolão escuro por um vestido preto, amarrou no cabelo um lenço preto com a imagem de um Coração-de-Jesus, e foi chamar Damião, que estava cortando um resto de palma para a bezerra. Quando ele viu o vestido da mãe largou a foice e seguiu atrás. 

Vieram andando calados, as alpercatas estralando nas pedras, até pegarem a baixa do açude. Viram de longe o bacião vazio, amarronzado, a lama seca já se esfarelando. Touceiras de mato empapado de terra, aqui e ali peixes secos e duros como casca de árvore, latas esburacadas pela ferrugem.

Lá na frente um grupo de pessoas viradas na direção deles protegia os olhos do sol com a mão erguida. Foram até lá, firmando os pés com dificuldade nos torrões soltos. 

Junto de uma moita coberta de lama, guardada pelo semicírculo de gente silenciosa, viram a ossada suja, de criança, afundada na terra. 

Dona Mina chegou perto, fez o sinal da cruz, ajoelhou-se. Viu o crânio comido pelos peixes, as costelas finas, um braço num gesto desengonçado, o calção de time de futebol semi-apodrecido. 

Rezou baixinho o Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Credo, a encomendação-das-almas, e um sussurro de responsórios a acompanhou.

Terminada a reza, fez um sinal ao filho, que se adiantou, usou um galho grosso como alavanca, despregou a ossada onde ela se grudava ao barro espesso. Conseguiu com jeito liberar inteiras as pernas, quase encobertas. 

Quando terminou de soltar tudo, alguém lhe estendeu um saco de pano onde ele agasalhou os despojos, por entre murmúrios e améns.

Dona Mina, sem uma palavra, fez meia volta e foi no rumo de casa, onde uma cova antiga esperava aberta, abrigada por palhas de bananeira. Depois de tantos anos, pela primeira vez dormiria em paz, sabendo onde estava o filho. 

O sol castigava as pedras, rebatia nas malacachetas, e Damião vinha atrás dela em silêncio, a barba grisalha molhada de lágrimas, os braços robustos protegendo o irmão gêmeo, morto no tempo da fartura.