terça-feira, 25 de agosto de 2015

3902) Traduzir Perec (26.8.2015)



Vão aqui algumas notas sobre condições especiais da tradução literária. Em 1969, Georges Perec publicou La Disparition, seu famoso romance onde a letra “E” não aparece nem uma vez. O desaparecimento do E é ilustrado pelo desaparecimento do protagonista, Anton Voyl (alusão a “voyelle”, vogal), e de tudo que se refere à quinta letra do alfabeto.

Em 1995, Gilbert Adair publicou a tradução em inglês (A Void). O jornal Rascunho de Curitiba publicou em seu número de agosto uma tradução de Vinícius Gonçalves Carneiro para o primeiro capítulo do livro, que intitulou O Sumiço.  Abaixo, o texto do primeiro parágrafo, nas três versões.

Original: “Anton Voyl n’arrivait pas à dormir. Il alluma. Son Jaz marquait minuit vingt. Il poussa um profound soupir, s’assit dans son lit, s’appuyant sur son polochon. Il prit un roman, il l’ouvrit, il lut; mais il n’y saisissait qu’un imbroglio confus, il butait à tout instant sur un mot dont il ignorait la signification”.

Gilbert Adair: “Incurably insomniac, Anton Vowl turns on a light. According to his watch it’s only 12:20. With a loud and languorous sigh Vowl sits up, stuffs a pillow at his back, draws his quilt up around his chin, picks up his whodunit and idly scans a paragraph or two; but, judging its plot impossibly difficult to follow in his condition, its vocabulary too whimsically multisyllabic for comfort, throws it away in disgust”.

Vinícius Gonçalves Carneiro: “Insone, Tônio Voguel, com um toque no interruptor, enche de luz o dormitório. No relógio de Bolso de Zurique: cinco e quinze. Depois dum profundo suspiro, ergue-se do leito e estende-se sobre um coxim. Escolhe um livro, percorre, lê, só compreendendo um imbróglio confuso, sempre colidindo num termo desconhecido.”

VGC optou na versão brasileira por fazer desaparecer o “A”, fiel à intenção do original, que é omitir a letra mais frequente no idioma. Visto que o livro de Perec se organiza inteiramente em torno dessa ausência crucial, não há problema, por exemplo, em traduzir “minuit vingt” por “cinco e quinze”: a hora certa é irrelevante, basta que seja plausível. O que importa mesmo é que seja uma hora sem a letra-tabu.

O tradutor precisa acompanhar o autor em suas manobras: para onde o autor vai, ele tem que ir também. Mesmo quando isso acarreta uma aparente contradição (traduzir trocadilhos, p. ex., exige o emprego de frases diferentes das que aparecem no original.) Quando a obra literária impõe uma condição especial, essa condição é imperativa para quem traduz. Para segui-la, ele é autorizado a pequenas infidelidades desse tipo, que o ajudam a ser fiel ao efeito principal pretendido pelo autor.


3901) "As Aventuras do Flama" (25.8.2015)




("O Flama": pelo filho, Mike Deodato, e pelo pai, Deodato Borges)

Foi o primeiro super-herói paraibano. Nasceu na novela de rádio homônima transmitida todos os dias pela Rádio Borborema; eu e minha irmã Clotilde ficávamos grudados no pé do rádio para ouvir as histórias escritas por Deodato Borges e interpretadas pelo “cast de rádio-teatro da Rádio Borborema”. 

Era um tempo em que praticamente todas as noites havia novelas de rádio escritas e interpretadas por artistas locais. Meu pai trabalhou na rádio alguns anos, e alguns desses atores frequentavam nossa casa. 

Lembro de ter ouvido uma adaptação de As Quatro Penas Brancas, romance de aventuras passado na Legião Estrangeira.

O Flama era um herói mascarado e usando capa, fisicamente no modelo do Batman. O rosto me sugeria uma certa semelhança com Errol Flynn, que era uma espécie de George Clooney daquele tempo. Suas aventuras ocorriam num ambiente que misturava elementos brasileiros e estrangeiros. 

No elenco de personagens, havia Eliana, sua noiva (era um tempo em que os super-heróis tinham noivas!), o garoto Zito (uma espécie de Robin), Bolão, um rapaz meio gordo que servia de “alívio cômico” pelas suas tiradas engraçadas, o Comissário Láurence (simétrico ao Comissário Gordon, do Batman), e havia um “Raposa” que usava uma metralhadora e chamava os bandidos de “os macacos”.

A novela foi patrocinada pelos Drops Dulcora (“quadradinhos, embrulhadinhos um a um!”). Criou um Clube do Agente Secreto, com carteirinha e tudo; e sorteava fotos do Flama e Zito, mascarados, de arma em punho, em contraluz, fotos feitas em estúdio. Era grande a audiência. 

O Flama (tal como o Dick Peter, de Jeronymo Monteiro) tanto enfrentava assaltantes de bancos quanto “monstros de ferro” que invadiam a cidade.

O sucesso foi tanto que Deodato lançou em março de 1963 a revista em quadrinhos, escrita e desenhada por ele. A esta altura eu, já com 12-pra-13 anos, não me interessei tanto, não colecionei, afinal já lia Conan Doyle e Julio Verne. Mas o sucesso foi grande! 

Agora, a Funesc (Fundação Espaço Cultural, de João Pessoa) lançou uma edição fac-símile do número 1 da revista, com uma HQ (“O Caso do Dragão Vermelho”), um conto (“Rapto!”) e algumas seções de piadas, curiosidades, sonetos.

A reedição do gibi vem com uma sobrecapa “moderna” desenhada por Mike Deodato, filho do autor, merecidamente famoso por sua atividade de desenhista no mercado internacional. 

Deodato faleceu ano passado (2014). Foi um entusiasta da cultura pop, como Jeronymo Monteiro, Rubens Francisco Lucchetti, Péricles Leal e outros pioneiros da literatura de gênero (policial / FC / terror / fantasia) que temperaram no fogo do medo os meninos e as meninas da minha geração.