quarta-feira, 5 de agosto de 2015

3885) A luta da tradução (6.8.2015)



Traduzir é focar a atenção no texto e em tudo que existe por trás e em volta do texto. Traduzir é ler de verdade, ler pra valer. Paulo Henriques Britto já disse que só lê um livro quem o traduz, porque é forçado a parar, pensar a sério cada frase, examinar por todos os lados cada palavra para entender o que ela está fazendo ali. 


Pode até existir leitura dinâmica, mas não existe tradução dinâmica. Leitor é lebre, tradutor é tartaruga. Devagar e sempre.

Literatura é texto, e toda a carga expressiva da obra tem que estar nas palavras que serão impressas no papel. Mas a tradução não pode prescindir do contexto. Pra decidir sobre as palavras, muitas vezes é preciso ler outros livros do autor, biografias, estudos. Nem sempre é possível. Nem sempre é indispensável. Mas quando for o caso vale a pena. 

O tradutor tem a obrigação de conhecer o pensamento do autor (mesmo um autor estreante, ou falecido há séculos, ou desconhecido) melhor que o leitor, porque antes de ser parceiro do leitor ele é parceiro do autor.

O tradutor é um intermediário numa experiência alheia; ele está ali para aproximar o livro e o leitor, não pode se entusiasmar muito e “querer brincar também”. (O que, no caso, significa colocar na tradução coisas que não havia no texto.)  

Precisa de envolvimento no instante de ler (para absorver todas as nuances possíveis do texto, perceber todas as suas implicações, alusões, etc.), e distanciamento no instante de botar palavras no papel, para não extrapolar.

É preciso consistência. Se, no interior de um mesmo texto, você resolve traduzir “beach” por praia e “shore” por beira-mar, deve manter isso até o final. Às vezes o autor usa esses termos para distinguir áreas diferentes de uma paisagem maior que ele está visualizando. Mesmo que esses termos sejam sinônimos ou equivalentes, convém traduzir A por A1 e B por B1, sempre. 

Muitos livros exigem que a gente crie um glossário à parte, para manter essa continuidade.

Deve-se ter em mente o estilo e as preocupações específicas do autor. Um autor de estilo floreado, ornamental, exige uma tradução à altura, mesmo que o tradutor não goste de ler coisas escritas dessa forma. 

Um autor que usa muito palavrão não pode ter um tradutor pudico. Se no texto original há trechos numa terceira língua, é melhor mantê-los assim, traduzidos à parte. Se o texto é cheio de neologismos, pede neologismos equivalentes. Se o autor revela preconceitos isso deve ser mantido, não pode ser “corrigido” na tradução.

É bom manter o dicionário aberto ao lado. Quando o consultar, não o feche, deixe-o aberto naquela página. Talvez precise olhar de novo a mesma palavra daí a alguns minutos.