quinta-feira, 21 de maio de 2015

3819) "O Perfura-Neve" (21.5.2015)




Num futuro não muito remoto, o planeta mergulhou numa nova Era Glacial, os oceanos estão congelados, os continentes cobertos de neve, e a temperatura ao ar livre é mortal para uma pessoa desprotegida. Da humanidade, sobrevive um número impreciso (mas enorme) de pessoas abrigadas no Perfura-Neve, um longuíssimo trem eternamente em movimento, microcosmo do mundo que deixou de existir.



O Perfura-Neve é mostrado ao leitor em sua insensata extensão, em quadrinhos horizontais de margem a margem. Vagões dormitório, vagões agrícolas, vagões de criação animal, vagões recreativos com bordéis para os ricos – enquanto os passageiros dos últimos vagões, os “fundistas”, reproduzem a vida dos moradores de cortiços. E o trem não para, produzindo mais energia do que consome, mas vendo essa relação se estreitar a cada ano que passa. Em algum momento, o trem não poderá mais avançar.



Le Transperceneige é uma “graphic novel”, e pode mesmo ser chamado de novela gráfica. A história começou com o volume O Perfura-Neve (1984), escrito por Jacques Lob (1932-1990) e desenhado por Jean-Marc Rochette. Após a morte de Lob, Rochette fez reviver a série, com roteiros de Benjamin Legrand: juntos os dois publicaram os capítulos finais, “O explorador” (1999) e “A travessia” (2000).  Os três episódios saem juntos agora pela Editora Aleph (SP), com tradução de Daniel Lühmann. É um álbum de 250+ páginas que faz jus ao desenho rico e movimentado de Rochette, sendo notável a diferença entre seu traço do primeiro capítulo e o dos dois últimos.



A idéia original de Lob, a do trem-que-não-para-nunca, tem ilustres precedentes. Um deles, The Inverted World (1974) de Christopher Priest, mostra um trem-universo num movimento relativístico incessante através do espaçotempo.  Esse livro, traduzido na França em 1975, fez um enorme sucesso, mais do que a obra inteira de Priest vendia na Inglaterra.



Mas o filme-de-trem é um gênero em si, é uma história que não existiria sem o trem. Tanto pode acolher o mistério detetivesco do Assassinato no Expresso do Oriente quanto a porrada pura de O Imperador do Norte, a guerra padrão de O Expresso de Von Ryane o mensagem natalina de O Expresso Polar. Se já estou falando em cinema a propósito de um álbum de quadrinhos é pela contiguidade que vejo entre os dois, e o fato de que o O Perfura Neve foi filmado em 2013 por Joon-Ho Bong.


A novela gráfica do trio francês é visualmente asfixiante, avançando naqueles corredores estreitos com uma sucessão disparatada de ambientes. Maquinações mafiosas, líderes cruéis, pessoas comuns sem esperança, como nas distopias mais distantes, mais sozinhas e mais geladas.