sábado, 28 de fevereiro de 2015

3750) Spoilers (1.3.2015)




(Agatha Christie)




Quando o cartunista Péricles fazia “O Amigo da Onça” na revista O Cruzeiro, um dos meus preferidos era o que mostrava uma fila na bilheteria do cinema e o Amigo da Onça saindo da sessão anterior e repetindo, enquanto caminha ao longo da fila: “O assassino é o pai da moça... o assassino é o pai da moça...”  

Eu já lia Agatha Christie; era capaz de captar a crueldade dessa ação. Quando uma narrativa (filme, livro, etc) coloca todo seu peso no aparecimento de um enigma e sua posterior resolução, saber essa solução antecipadamente estraga 90% do prazer.

Daí que um debate antigo na literatura policial tenha sido o de manter a presença e o interesse do enigma, mas de tal maneira que ele não seja o único motivo pelo qual o livro está sendo lido.  

Um leitor do O Caso dos Dez Negrinhos de “Dame” Agatha pode, mesmo sabendo quem é o “vingador invisível”, reler o livro somente pelo clima de suspense, pela detalhada criação de personalidades.  Mas nem todo livro dela se sustenta para quem já sabe o final.  

Um volume de análise muito interessante (A Talent to Deceive – An Appreciation of Agatha Christie, 1980, de Robert Barnard) previne o leitor, na introdução, de que os capítulos de 4 a 6 são obrigados, por serem capítulos de análise técnica dos enredo, a revelar o final; mas o autor avisa que os demais capítulos podem ser lidos sem susto, pois não revelam mais nada.

Não é só com o romance policial.  Muitas obras de literatura mainstream têm revelações finais que são cruciais para o enredo, e que não são necessariamente sobre um crime. Pode ser uma revelação de identidade, como em Grande Sertão: Veredas, ou a descoberta de que o mundo não é o que parece ser, como em tantos romances de ficção científica. 

O mistério e o enigma não pertencem apenas à literatura de crime. Eu gostei muito dos desfechos de A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, ou de A Invenção de Morel de Bioy Casares. Se vier a escrever sobre esses livros, terei que omitir informações, para que o leitor leia em paz, fique impregnado do livro por inteiro, e possa extrair desses momentos literários a satisfação que eles pretendem produzir. 

Como resenhar livros dessa natureza?  Eu diria que a uma solução possível é: 

1) resenhar o romance descrevendo-o apenas em parte; 

2) prevenir o leitor de que o enredo se baseia em algum tipo de surpresa ou resolução de enigma; 

3) criar um certo suspense sobre o não-dito.  Deixar que a consciência de que há “spoilers” (revelações inoportunas) à espreita funcione como um atiçador a mais da curiosidade do leitor, e é melhor ainda que ele não saiba ao certo qual aspecto da história está sujeito a spoilers.