sábado, 7 de fevereiro de 2015

3731) A loucura e a lucidez (7.2.2015)



("The Tell-Tale Heart", por Virgil Finlay)

Não sei quem foi que disse que o remédio de um doido é outro na porta.  Talvez seja preciso um maluco para entender o que se passa na cabeça de outro maluco.  Ele tem que ser capaz de pensar como o maluco e ver que até certo ponto toda maluquice é justificada.  E tem que ser capaz de dar um passo atrás e ver que é só doidice mesmo, ou seja, aquilo não é a narrativa-mãe, aquilo é o Delírio do Depoente.  Por mais comovente que esse delírio seja.  Assim como um bêbado é alguém que ‘NÃO ESTÁ BÊBADO!!!”, um bom doido relativiza qualquer loucura.

Num ensaio sobre a imaginação, Montaigne diz (não li o ensaio, vi a citação por aí): “Gallus Vibius preparou sua mente de tal forma para compreender a essência e a dinâmica da loucura que deixou seus critérios serem distorcidos, a ponto de não poder acomodá-los de novo em seus devidos lugares; e, caso quisesse, poderia se vangloriar de ter-se tornado um abestado através da sabedoria.” 

O psicanalista Robert Lindner tem um ensaio famoso, “O divã espacial” (“The Jet-Propelled Couch”) onde ele descreve a longa terapia de um homem que acreditava piamente num universo paralelo “space opera” onde alternava seus dias com os dias passados na Terra.  (Há uma tese de que esse paciente teria sido o escritor Cordwainer Smith.)  O analista dava-lhe conselhos de como administrar seu império galáctico, mas acabou se envolvendo e entrando na viagem do outro. Recompôs-se depois (não é spoiler), mas admitiu que houve um duelo psicológico intenso, e que por um momento o Delírio do Depoente prevaleceu.

Vejo, por exemplo, Rubião tentando glosar os motes de Quincas Borba, tentando a ominosa tarefa de entender um doido por dentro.  Deve acontecer muito com empresários no campo das artes, que endoidecem por artistas imbancáveis, que se deixam levar mais pelos seus instintos do que pela razão, e que antes dos interesses pessoais pensam acima de tudo nos interesses do coração. Muitos ficam ricos. Provavelmente porque sabem como pensam os seus fãs na derradeira fila a contar do palco. São mentes iguais. 

O protagonista tem um amigo que é doido: eis uma cadeia dramatúrgica presente numa enorme variedade de textos.  Quem entende o doido, sensato lhe parece. O que mais chamamos de loucura é o contrário dela, chamamos de loucura a desorganização fatal do pensamento. Mas não, a loucura também é organização, organização maligna, sugadora, feito raiz de algaroba visitando o poço alheio.  Uma ordem vinda de cima que se recusa a dialogar com o resto e que precipita assim a crise que faltava.  O organismo é invadido por uma linguagem estranha que acaba por matá-lo por dentro.