domingo, 1 de fevereiro de 2015

3726) Confluências (1.2.2015)



Alguns anos atrás eu comprei na Berinjela um livro de Jean Gattégno sobre Lewis Carroll.  Não é propriamente uma biografia, no sentido cronológico, mas são trinta e tantos capítulos sobre temas específicos como “Fotografia”, “Política”, “Pseudônimos”, “Sexualidade”, “Teatro” e assim por diante.  No final, um retrato bem variado do criador de “Alice”.  Eu estava de madrugada folheando o livro, quando cheguei à cronologia da vida de Carroll.  Dizia a certa altura: “1898: no princípio de janeiro, um leve resfriado evolui para bronquite; Charles Lutwidge Dodgson morreu em paz em 14 de janeiro.”  Nesse momento ergui os olhos para o calendário sobre a mesa: estávamos, já, nas primeiras horas de 14 de janeiro, e o ano era 1998.  Talvez eu tenha lido essas palavras exatamente cem anos depois que o reverendo bateu o trinta-e-um.

Qual a chance de eu pegar aquele livro (não lembro se foi no mesmo dia em que o comprei, ou algum tempo depois) justamente no dia da morte do cara?  Eu nunca soube essa data, não podia ser memória inconsciente.  E aliás não é tão raro.  Outra vez, de madrugada, eu estava lendo as linhas iniciais de The Eye in the Pyramid, um thriller psicodélico-surreal de Robert Shea e Robert Anton Wilson. O narrador diz:

“Por exemplo, não estou muito seguro nem sequer a respeito de quem sou eu, e meu constrangimento nesse aspecto me leva a imaginar se alguém será capaz de acreditar no que digo.  Pior ainda: neste momento eu estou agudamente consciente de um esquilo, no Central Park, perto da Rua 68, em Nova York, e esse esquilo está pulando de um galho para outro, e acho que isso acontece na noite de 23 de abril (ou madrugada de 24?).”

Preciso dizer?  Era exatamente isso: eu estava começando a ler aquele livro, no qual pegava pela primeira vez, nas primeiras horas da madrugada de um 24 de abril, o ano não importa.  Nossa geração, felizmente, criou um jargão para isso: falha na Matrix.  E nomear uma coisa misteriosa com um jargão não reduz seu mistério, mas facilita a gente pegar aquela coisa e botar no fim de uma lista. 

Para ser científico, devo informar que esses dois casos (não lembro se houve algum outro) me animaram a prestar mais atenção, e dessa época em diante foram numerosíssimas as datas que pipocaram num trecho de ficção e foram rapidamente desmentidas pelo calendário.  Mas...  O que me leva a pegar um livro ao acaso, numa estante, abrir numa página qualquer, e daí a pouco ver impressa, no texto, o dia e o mês em que estou eu agora, de livro em punho?  Como uma daquelas operações “macro” do editor de textos, onde premindo uma combinação de teclas fica registrada na tela a data e a hora atual.