quinta-feira, 24 de setembro de 2015

3927) O olhar que lê (24.9.2015)




Toda linguagem é metalinguagem, porque qualquer frase, inclusive esta, ou o “bom dia” que damos ao porteiro do prédio, traz embutida uma reflexão prévia ou simultânea sobre significantes e significados. Não existe enunciação da linguagem que não contenha uma crítica ou uma estética da linguagem. Dependendo de quem estiver na portaria eu posso dizer “Bom dia” ou “Fala, Rodrigo, tudo bom?”. A crítica da linguagem e a escolha da linguagem vêm embutidas em cada opção. Toda linguagem impõe hierarquias, prioridades e critérios de escolha. Magritte compreendeu que a melhor maneira de indicar o que é um cachimbo é desenhar um cachimbo e dizer: “Isto não é um cachimbo”.  Vale para praticamente tudo.

O século 20 foi o apogeu dessa vertigem, e tudo adquiriu foros de linguagem própria: a propaganda, a moda, a culinária, a produção industrial, o trânsito, as posições sexuais, a espessura da espuma do chope. Uma doença é uma linguagem com que nosso corpo, esse ser alienígena, tenta nos comunicar algo. Há uma linguagem inconsciente no modo como na praia entramos no mar: tibungando, andando, aos pulinhos... O planejamento urbano é um texto cifrado, e também o jeito de aparar a barba, o modo de forrar a cama, a postura corporal. Tudo é leitura, como nos advertem os comentaristas de futebol: “Neymar leu a jogada corretamente e se posicionou no lugar certo na hora certa”.

A mídia ambiente é toda ela de linguagem, mas não é uma linguagem única nem concebida por uma mente única. É tão diversificada quanto uma floresta tropical, e as linguagens lutam por espaço, lutam por sol, lutam por água – em termos práticos, lutam por um olhar que as leia e as recolha na memória a ponto de deixar seu comportamento ser moldado por elas. Uma empresa espalha dez mil cartazes “Beba Punk-Cola!” pela cidade e começa a medir o consumo nas semanas seguintes. Se aquela enunciação não está produzindo resultado, ela definha como um arbusto sem água. É a única maneira de saber se uma mensagem assim está sendo lida. Lemos sem perceber. Um cardápio, um jardim, um ritual, tudo é uma frase de uma espécie de língua.

Tudo é linguagem. Um detetive chega ao local do crime e lê os objetos, os sinais de presença humana, as coisas que estão fora do lugar. Médico lê sinais nos olhos, na pele e na respiração de um cliente. O mecânico de oficina lê os ruídos e a fluidez de movimentos de um carro que acabou de chegar. Não são linguagens produzidas por uma inteligência humana, são mil linguagens secundárias criadas inadvertidamente por mil ações humanas. Talvez não tenham sido propriamente “escritas”, mas podem ser propriamente lidas.



Nenhum comentário: