sábado, 30 de maio de 2015

3828) Um livro de presente (31.5.2015)



Ganhar livros no aniversário? Beleza! E dar livros no aniversário dos outros pode ser melhor ainda. Presentear livros pressupõe que o aniversariante goste de ler, e que a gente saiba que tipo de livro ele prefere. Já me ocorreu encontrar um livro num sebo, durante uma viagem, comprá-lo, e ficar meses com ele esperando o aniversário de Fulano para fazer-lhe uma surpresa. Pra mim, presentear dessa forma é muito melhor do que passar correndo num shopping, no fim da tarde, para comprar uma coisa qualquer no trajeto para o aniversário de Fulano. Presente não devia ser a obrigação de um dia. Não devia ser, como diz um piadista amigo meu, “o crachá pra entrar na festa”. Devia ser uma coisa de pessoa para pessoa, independente de festa, de data, de compromisso. Entro numa livraria em São Paulo e vejo um livro daquele poeta obscuro que minha amiga Fulana, da Bahia, vive procurando sem achar. Pegar esse livro ali, na hora, pra mandar pra Fulana (mesmo sem aniversário) me parece um gesto de carinho muito melhor do que o “crachá” comprado às pressas.

Como falei, tem que ser um livro personalizado, que tenha a ver com o destinatário. Não vou fazer como outro amigo, que deu de presente à esposa (que nem lia francês) as obras completas de Baudelaire, o poeta preferido dele. Chamo a isso “presente de gringo”. Gringo só faz um favor a você quando sai ganhando alguma coisa com isso. Eu posso não ser fã de Star Trek, mas se meu amigo Sicrano é fã da série e ainda não tem o livro que acabou de sair, por que não levar esse livro para ele?  Presente é pra quem ganha.

Tem outro aspecto interessante no caso mais raro (mas que é o meu) de quem publica os próprios livros. Gosto de dar um livro meu de presente no aniversário de alguém; acho que isso é mais personalizado ainda, porque não é somente algo que eu escolhi, é algo que escrevi, e existe aquela sensação de estar oferecendo metaforicamente um pouco de mim àquela pessoa. Claro que continua a valer a regra do interesse, porque não vou dar um livro de poemas meus a quem não lê poesia, ou de FC a quem não gosta de FC.

E pensando bem, quando damos um livro nosso de presente, esse presente acaba funcionando em mão dupla. Queremos dar aos nossos amigos o prazer de ler um livro nosso, mas queremos também dar a nós mesmos o prazer de contar com a leitura deles. É um presente recíproco, porque dar um livro nosso é pedir em troca a leitura, a atenção, o tempo precioso dos nossos amigos. Queremos seus olhos, sua mente. Um livro presenteado assim é um presente em mão dupla, e às vezes o maior presente que damos a alguém é a leitura do livro que ele nos presenteou.




3827) "O Ladrão de Bagdá" (30.5.2015)




Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 30, será exibido O Ladrão de Bagdá (1940). Há uma certa dificuldade na atribuição de autoria deste filme, que durante a produção passou pela mão de vários diretores, e ora é creditado a um, ora a outro. Michael Powell e William Cameron Menzies são talvez os nomes mais citados, mas também dirigiram cenas Alexander Korda (o produtor), Zoltan Korda (irmão deste, e produtor associado), Ludwig Berger e Tim Whelan.  Feito durante a II Guerra Mundial, o filme teve parte das cenas filmadas na Inglaterra e parte nos EUA. Segundo o saite IMDB, é fácil saber o local onde foram feitas várias cenas: o rígido código moralista do cinema norte-americano da época fez com que o traje das odaliscas fosse mais “composto” nas cenas ali filmadas.

É uma fantasia oriental, a história de um jovem que se apaixona por uma princesa e tem que disputá-la com Jafar, um vizir maldoso (interpretado por Conrad Veidt), e recebe a ajuda de um menino de rua interpretado por Sabu, ator-mirim indiano que fez muito sucesso na época. Muitas situações, personagens e cenas deste filme foram reaproveitados anos depois, como homenagem, no desenho Aladim, da Disney.

Foi um dos filmes que marcaram minha infância, porque o vi numerosas vezes (era reprisado nas matinais de domingo), e existem ecos dele no meu romance A Máquina Voadora (1994). Consta que foi um dos primeiros filmes em que foi usada a trucagem de tela verde, ou “chroma-key”, tendo ganho o Oscar de Melhores Efeitos Visuais naquele ano, além de Fotografia e de Direção de Arte.

Um gênio gigantesco saindo como uma nuvem negra de dentro de uma garrafa, em plena praia; um cavalo com asas, e depois um tapete voador, sobrevoando uma cidade; a batalha do herói com uma aranha gigante no centro da teia; autômatos que se movem, dançam, lutam; são só algumas das imagens marcantes do filme, que é talvez a melhor adaptação das Mil e Uma Noites já feita no cinema. Quando Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou num dos extremos de sua escala o gênero “maravilhoso”, referia-se a estes universos onde todos os prodígios, mesmo os que causam espanto, são considerados naturais, porque o mundo onde acontecem é um mundo feito de prodígios onde não vigora nenhum filtro materialista determinando o que pode ou não acontecer.




quinta-feira, 28 de maio de 2015

3826) Somos um videogame (29.5.2015)


(ilustração: Julian Garcia)



Escrevi nestes dias sobre o PlayStation Terra, o hiper-mega videogame que é o nosso universo, de acordo com uma teoria de Rich Terrile, cientista da Nasa. Ele diz que o avanço da computação e do processamento de dados leva a crer que um dia criaremos simulações de computador equivalentes a um mundo de verdade. Diz Terrile que o universo, como a computação gráfica, é formado de pixels, minúsculos pontos ou unidades indivisíveis. Há um limite da matéria além do qual não conseguimos observar, o que sugere que mesmo sendo o número de “pixels” do universo um número espantosamente grande, não é infinito, e se não é infinito é computável.

Cada um desses pixels do nosso mundo, diz ele, pode ser definido por coordenadas de tempo, espaço, volume e energia. Ele diz: “Estamos no limiar de um estado em que seremos capazes de criar um universo, uma simulação, e de descobrir que nós também estamos vivendo no interior de uma simulação parecida, que poderia por sua vez produzir mais uma, e assim por diante. Nossos seres simulados poderiam produzir novas simulações. O que me intriga é que, se existe um criador, e no futuro haverá um criador que seremos nós mesmos, isto quer dizer que nós também podemos ter sido criados por alguém. Somos como deuses, e como criaturas de deuses, e tudo é produto nosso.”

A FC brinca com essa idéia há décadas. No conto de Frederik Pohl “The tunnel under the world” (1954, texto aqui no Projeto Gutenberg: http://tinyurl.com/mbvtvfn) o personagem começa a perceber estranhas descontinuidades e repetições no seu dia-a-dia (os famosos “erros da Matrix”), até descobrir que o seu mundo é uma simulação, com pessoas dotadas de pseudo-consciência e pseudo-livre-arbítrio, feitas para testar campanhas publicitárias. (Premissa retomada por Daniel F. Galouye em seu clássico Simulacron-3, de 1964.)

Fernando Pessoa, estudioso dos filósofos gnósticos, fez experiências com essa idéia de uma hierarquia de deuses criando uns aos outros, cada novo deus menor e mais imperfeito do que o que o criou. No soneto 1 do tríptico “No Túmulo de Christian Rosenkreutz”, ele diz:  

“Quando, despertos deste sono, a vida, / soubermos o que somos, e o que foi / essa queda até corpo, essa descida / até à noite que nos a Alma obstrui, // conheceremos pois toda a escondida / verdade do que é tudo que há ou flui? / Não: nem na Alma livre é conhecida… / nem Deus, que nos criou, em Si a inclui. // Deus é o Homem de outro Deus maior: / Adão Supremo, também teve Queda; / também, como foi nosso Criador, // Foi criado, e a Verdade lhe morreu… / de Além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda; / aquém não há no Mundo, Corpo Seu.”




quarta-feira, 27 de maio de 2015

3825) O romance anagrama (28.5.2015)



A literatura experimental exige uma faísca apenas de imaginação – e uma paciência infinita. Certas experiências literárias radicais do nosso tempo se parecem com auto-punições, com castigos que ninguém teria coragem de impor a outras pessoas mas que, um belo dia, um cara resolve impor a si mesmo. Vejam só o caso de Kabe Wilson, artista multimídia britânico. Quatro anos atrás ele estava pensando na arte do anagrama (misturar as letras de uma palavra para obter uma palavra diferente). Wilson pensou: “E se alguém usasse essa técnica com as palavras de um livro? E se alguém pegasse todas as palavras de um livro, inclusive as repetições, e as misturasse para dar origem a outro livro?”.

O resultado está aí: é o romance experimental Of One Woman Or So, cujo texto tem as 37.971 palavras do livro-ensaio de Virginia Woolf A Room of One’s Own (1929), arrumadas noutra ordem e produzindo um livro diferente. Para combinar, o título do livro é um anagrama do título original, as mesmas letras combinadas para formar novas palavras. (Ver aqui: http://tinyurl.com/lv7jux2).

Wilson usou computadores, processadores de texto, tesoura, cola, papel, para se certificar de que não estaria usando a mais, ou a menos, palavras comuns como “the” ou “be”.  Ele usou palavras do original para aludir a autores nossos contemporâneos, como Edward Said, e para inserir no novo livro menções a Harry Potter ou ao time de futebol Manchester United. “O mais difícil de tudo,” diz ele, “é que eu não sabia se ia ser possível ou não, e só poderia descobrir quando chegasse no fim. O meu medo era de compor o livro inteiro e ficar no final com 300 utilizações de uma mesma palavra, sem nenhum lugar para encaixá-las”.

Isso é literatura? Para mim é, apesar de ser uma versão mais complicada da criação literária, que já tem dificuldades de sobra. Mas Kabe Wilson diz: “Eu me vejo mais como um artista plástico do que como um escritor. Era importante ter, no final do processo, alguma coisa que eu pudesse colocar numa exposição”. O livro está exposto em 145 pranchas tamanho grande, com todas as palavras recortadas e coladas em suas novas posições.

Nesta coluna, escrevi dias atrás sobre “Livros interferidos”. Os textos literários (e os livros impressos que lhes dão suporte) estão se tornando uma nova matéria-prima, um novo material bruto. Visto geralmente como o fim de um processo literário, o livro impresso é agora o ponto de partida para um novo processo de criação. Reflexo de uma época de abundância de informação, tecnologias de manipulação do texto a custo zero, atitude de ambígua veneração para com as obras canônicas.



terça-feira, 26 de maio de 2015

3824) PlayStation Terra (27.5.2015)



(O 13o. andar)

Bato nessa tecla há trinta anos. O mundo em que vivemos não existe, ou pelo menos não existe como imaginamos. O planeta Terra; a humanidade e a histórias de suas civilizações; a cidade em que vivemos; as pessoas que conhecemos; a nossa vida no dia a dia – tudo isso não passa de uma simulação. Nossa consciência foi ativada artificialmente por seres mais poderosos do que somos capazes de imaginar.  E eles nos acompanham com o interesse (e o tédio eventual) de quem joga um videogame ou de quem roda no computador uma simulação para avaliar processos e resultados.

Essa idéia familiar à geração “Matrix” surgiu para mim quando li o romance Simulacron-3 de Daniel F. Galouye (adaptado para o cinema como O 13º. Andar, de Josef Risnak, 1999).  A FC explorou de mil maneiras este tema do indivíduo que descobre que seu mundo não é real, é uma simulação feita em computador, e que ele próprio não existe, é apenas o resultado de um conjunto de instruções.

Agora, Rich Terrile (cientista do Centro de Computação Evolucionária e Design Automativo, no Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa) sugere que esse gigantesco projeto simulatório não é obra de alienígenas, mas de pessoas do futuro (aqui: http://tinyurl.com/cpmoqgs). Diz ele: “A cada 6 ou 8 anos surge uma nova versão do PlayStation. Nossa expectativa é de que em 30 anos uma versão, que deverá ser PlayStation 7, será capaz de computar cerca de 10 mil vidas humanas simultaneamente, em tempo real, ou uma vida humana completa em cerca de uma hora. Quantos PlayStation há no mundo? Uns 100 milhões. Pense em 100 milhões de consoles, cada um contendo 10 mil humanos. Conceitualmente, teremos mais humanos vivendo em PlayStations do que os humanos de carne e osso que existem hoje na Terra”.

Terrile ecoa uma frase famosa de Philip K. Dick ao dizer que a realidade não está toda pronta ao mesmo tempo, mas em forma potencial, e só se concretiza quando alguém a observa (como a Física Quântica tem demonstrado em relação ao mundo sub-atômico). Terrile compara o mundo a um jogo como a cidade de Grand Theft Auto IV: Liberty City, que seria um milhão de vezes maior que a capacidade do console, se existisse toda ao mesmo tempo. Acontece que cada trecho da cidade só aparece quando o jogador vai para lá – é como um cenário escuro e um ator andando, sob o facho de um holofote. O que não está sendo iluminado pelo holofote deixa de existir, até ser iluminado novamente. Cada um de nós viveria no seu circulozinho de luz, que se tornaria mais real, mais encorpado, quando muitos interagissem na mesma área. Talvez o nosso presente seja o passatempo sádico dos nossos tataranetos do futuro.


segunda-feira, 25 de maio de 2015

3823) A neo-monarquia (26.5.2015)



Perguntaram a Fernando Henrique Cardoso o que ele mais estranhou quando voltou a ser um político comum após dois mandatos na Presidência. Ele respondeu: “Tocar em maçanetas. Durante os oito anos em que fui presidente, não toquei em nenhuma, sempre que eu me dirigia a uma porta alguém corria e abria para mim.”  

O Brasil despiu o manto da monarquia e envergou o terno da República, mas a “liturgia do cargo” permaneceu exatamente a mesma, para citar a expressão criada por José Sarney, que entende como ninguém de salamaleques e rapapés. 

O Rei se estilhaçou em milhares de reizinhos federais, estaduais e municipais. Reis executivos, legislativos e judiciários, cada um com privilégios, venetas, com seu cardápio predileto de bajulações à la carte, de pompa e circunstância. Quando um ego humano atinge certos escalões, vira um tigre criado desde o berço com filé mignon: fica exigente que fica danado.

Paes de Andrade era presidente da Câmara dos Deputados no governo Sarney. Numa viagem oficial do mandatário, a Constituição o fez assumir por alguns dias a presidência. O que fez ele? Encheu um avião de correligionários e partiu para Mombaça (CE), sua terra natal, “para que a História registre”, disse, “que Mombaça já foi visitada por um presidente aqui nascido”. 

É um episódio digno das “Veias Abertas da América latina” de Galeano, e é a nossa versão institucional dos 15 minutos de fama que Andy Warhol prometeu a cada um no mundo futuro. E não é só no Brasil, embora a gente goste de escavacar essa ferida.

Todo mundo gosta, não é mesmo? É tapete vermelho, é cerimonial e fanfarra, é o exército de xeleléus se desdobrando para ver quem beija primeiro a mão estendida.  Excelência pra aqui, Excelência pra acolá, e ouso dizer que nossos políticos só deixaram de adotar a liteira porque uma limusine é mais confortável. Senão, Brasília pareceria um Festival Debret. 

Temos o cacoete da realeza, do sangue azul – de tudo quanto pareça nos afastar da plebe que nos ovaciona.

São só os políticos? Que nada. Artista também é chegado. Quando o Fleetwood Mac vendia dezenas de milhões de discos, exigia quatro limusines para trazer do hotel os quatro integrantes da banda. Têm a desculpa de que não é com dinheiro público, mas não é de orçamento que falo, e sim dessa necessidade de ser chamado King Disso, King Daquilo. 

São os presidentes, os papas, os magnatas, os CEOs, os integrantes de qualquer Hall of Fame. Se não fossem os humoristas que ficam pegando no seu pé, comeriam purpurina para deixar a privada coruscante de cores, e andariam pela rua vestidos de Clóvis Bornay desfilando com sua fantasia de “Apoteose de Roma Imperial”.









domingo, 24 de maio de 2015

3822) A política e o clima (24.5.2015)



(ilustração: John Schoenherr)


As razões de tantas metáforas climáticas: “o céu amanheceu tempestuoso no Congresso”, “esta semana o governo navegou em águas mais tranquilas”, etc., é que política e fenômenos atmosféricos obedecem a algoritmos de dinâmica semelhante. 

Seria interessante criar alguns critérios para avaliar o fluxo e o refluxo dos fatos políticos, num período qualquer; e depois comparar essa velocidade de respostas das massas à chegada do rádio, depois da televisão doméstica, depois da Internet, depois das redes sociais.

O viajante do tempo, na novela de H. G. Wells, empurrava para a frente a alavanca propulsora de sua Máquina, e em dois segundos víamos uma flor desabrochar e uma fruta apodrecer. 

O movimento das populações humanas, acelerado artificialmente por meios cibereletrônicos (tal como a pulp fiction prevê há quase um século), reage como um polvo que leva um choque de teiser ou como uma rã galvanizada.  Amostragens de reações que antes se colhiam em trinta anos colhem-se hoje em trinta meses. A lentidão dos fatos é ilusória, tudo está se acelerando, o vórtice já foi acessado, não há retorno nem destino.

O objetivo desse estudo, no entanto, não seria o de usar a meteorologia para prever o comportamento de candidatos, partidos, líderes em seus cargos, e o das diferentes massas, cortadas por diferentes filtros, que votam neles. 

(Imagino um enredo: Um grupo terrorista desenvolve um programa de hipno-treinamento capaz de inculcar nos que dele se beneficiam comandos de auto-destruição mediante senhas em voz alta que deflagrarão neurodetonadores em três pontos do cérebro. Os portadores inocentes desse comando serão promovidos, empregados, bajulados, terão sempre grupos que se aproximam sorridentes, apresentam-se a eles e os ajudam a galgar em poucos anos os degraus do poder. Um deles será candidato a presidente de uma nação. E na noite do debate final com audiência de 100% dos aparelhos e zero total na concorrência, o desafiante pronunciará a senha ao fazer-lhe uma pergunta, e a cabeça dele vai explodir em todas as direções.)

Talvez seja mais fácil influenciar uma revolução do que uma maré. 

A política é feita de gente como nós, mas a meteorologia tem seu próprio caos, e nosso poder se limita a interferir nela, em geral como efeito colateral de algo mais importante que estamos empreendendo. Não a conhecemos sequer para prevê-la, quanto mais para controlá-la. Já a política... 

Controlar multidões é mais fácil, todos conhecemos o nosso gado. Modelos literários e filosóficos não faltam. O tempo acelerou, encaixou no fotograma da mente, e agora a mente da gente está vendo tudo.



sábado, 23 de maio de 2015

3821) "O Inquilino" (23.5.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 23, será exibido O Inquilino (“The Tenant”, 1976) de Roman Polanski. O filme se baseia num livro de Roland Topor, romancista e desenhista de quadrinhos francês. É a história de um migrante polonês em Paris que aluga um apartamento onde algo terrível aconteceu com a inquilina anterior, e ele percebe que o edifício não gosta muito dele. A história lida com o tema da Substituição, em que um protagonista descobre uma pessoa numa situação bizarra, tenta chegar até ela (ou salvá-la, ou investigar a situação, etc.) e no final vê que seu destino é substituir essa pessoa.

É uma história de “casa assombrada” onde não há a presença de fantasmas humanos, e sim de um clima maligno que desencadeia a tragédia. O filme tem sido considerado o encerramento de uma “trilogia do apartamento” na obra de Polanski, três histórias de horror urbano ambientadas em apartamentos malignos, sendo as duas primeiras Repulsa ao Sexo (“Repulsion”, 1965) e O Bebê de Rosemary (1968).

Trelkovsky, o inquilino do título, é interpretado pelo próprio Polanski, com o ar desamparado de um Lionel Messi que não soubesse jogar futebol. Tentando investigar o suicídio da moradora anterior do apartamento, ele entra numa espiral de fatos insólitos e bizarros. A violência aparece em pequenos detalhes de mutilação física, cujo incômodo se torna ainda maior pela irrelevância do gesto ou pela falta de sentido, a qual gera uma sensação permanente de que “o Mal não tem um plano”, e que tudo pode acontecer. Não há uma explicação final, não há um mistério a resolver; o desfecho do filme desemboca, de modo ameaçador, nas suas sequências iniciais.

O filme tinha sido cogitado pelos produtores para ser dirigido por Jack Clayton, que dirigiu em 1961 o clássico de terror Os Inocentes. Talvez o fato do protagonista ser um polonês meio paranóico, sentindo-se perseguido em Paris, tenha levado os produtores a repassar o projeto para as mãos de Polanski. O diretor recria aqui, como ator, um personagem meio desamparado como o que interpretou em A Dança dos Vampiros (1967), que participa dos fatos sem entendê-los por completo. É um dos filmes mais estranhos na carreira do cineasta. O livro de Roland Topor teve uma reedição em 2006, incluindo textos de Thomas Ligotti e comentários sobre a versão de Polanski.


sexta-feira, 22 de maio de 2015

3820) "Cariris Velhos" (22.5.2015)



A região paraibana dos Cariris Velhos é limítrofe com o Vale do Pajeú pernambucano. As duas regiões juntas são uma espécie de Grécia Antiga nordestina, pelo acúmulo de tradições, histórias, lendas e versos. 

Tenho duas colherinhas desse sangue em minhas veias, visto que minha mãe nasceu e se criou em Coxixola (a cidade onde você, ao entrar, é saudado por uma placa dizendo: “Coxixola Existe!”), perto de Serra Branca e de São João do Cariri.

Cariris Velhos – passando de passagem de Pedro Nunes Filho (Recife, Jabre, 2008) é uma história dessa região contada por quem nasceu e se criou por entre aquelas vilas, cidades, fazendas, sítios, povoados, caatingas, serrotes e rochedos. 

Pedro Nunes, radicado hoje no Recife, é o autor de um dos grandes relatos épicos sobre a história da Paraíba: Guerreiro Togado (Recife, UFPE, 1977, já com reedições subsequentes), a história da “Guerra de Doze”, uma sucessão de batalhas que em 1912 opôs as forças militares da Paraíba e o bacharel Augusto Santa Cruz, que invadiu cidades, deu surra em padre e prefeito, pintou e bordou.

Em Cariris Velhos, o foco é mais a geografia social do que a História. Pedro Nunes descreve com conhecimento de causa as sutilezas da vegetação, da alimentação, do regime de secas do semi-árido.  

O capítulo “Caminho sem volta” refaz o percurso entre antigas fazendas, umas arruinadas e desertas, outras ricas e sólidas, bastiões da colonização que, por caminhos diversos, desde o fim do século 17, expulsou ou escravizou os antigos índios cariris, sukurus, tarairus. 

A escravidão dos africanos tornou mais complexa essa relação: 

“Enquanto o negro africano dominava algumas indústrias – muitos eram excelentes ferreiros, marceneiros, pedreiros, tecelões, agricultores e cozinheiros – o índio só sabia caçar e pescar.” (p. 80)

“Por todo o território, serras sobranceiras pontilhadas com esculturas de pedras gigantes, obras de deuses, teatros escondidos nas encostas da velha Borborema. Blocos de granito superpostos em forma de muralhas misteriosas espalhadas numa área de extensão sem fim. Sinais indeléveis grafados nas rochas pelas mãos de homens pertencentes a uma civilização ignota e milenar, desejosos de se comunicar com o futuro por meio de mensagens, cujo código perdeu-se no tempo, restando hoje indecifráveis" (p.33)

Os Cariris Velhos e o vizinho Vale do Pajeú são fonte perpétua da cantoria de viola e da poesia popular. É necessário o entendimento de sua história, da mentalidade e da cultura dos homens e mulheres que fundaram a civilização do semi-árido, tão importante na obra de seus poetas, de Ariano Suassuna a Pinto do Monteiro.






quinta-feira, 21 de maio de 2015

3819) "O Perfura-Neve" (21.5.2015)




Num futuro não muito remoto, o planeta mergulhou numa nova Era Glacial, os oceanos estão congelados, os continentes cobertos de neve, e a temperatura ao ar livre é mortal para uma pessoa desprotegida. Da humanidade, sobrevive um número impreciso (mas enorme) de pessoas abrigadas no Perfura-Neve, um longuíssimo trem eternamente em movimento, microcosmo do mundo que deixou de existir.



O Perfura-Neve é mostrado ao leitor em sua insensata extensão, em quadrinhos horizontais de margem a margem. Vagões dormitório, vagões agrícolas, vagões de criação animal, vagões recreativos com bordéis para os ricos – enquanto os passageiros dos últimos vagões, os “fundistas”, reproduzem a vida dos moradores de cortiços. E o trem não para, produzindo mais energia do que consome, mas vendo essa relação se estreitar a cada ano que passa. Em algum momento, o trem não poderá mais avançar.



Le Transperceneige é uma “graphic novel”, e pode mesmo ser chamado de novela gráfica. A história começou com o volume O Perfura-Neve (1984), escrito por Jacques Lob (1932-1990) e desenhado por Jean-Marc Rochette. Após a morte de Lob, Rochette fez reviver a série, com roteiros de Benjamin Legrand: juntos os dois publicaram os capítulos finais, “O explorador” (1999) e “A travessia” (2000).  Os três episódios saem juntos agora pela Editora Aleph (SP), com tradução de Daniel Lühmann. É um álbum de 250+ páginas que faz jus ao desenho rico e movimentado de Rochette, sendo notável a diferença entre seu traço do primeiro capítulo e o dos dois últimos.



A idéia original de Lob, a do trem-que-não-para-nunca, tem ilustres precedentes. Um deles, The Inverted World (1974) de Christopher Priest, mostra um trem-universo num movimento relativístico incessante através do espaçotempo.  Esse livro, traduzido na França em 1975, fez um enorme sucesso, mais do que a obra inteira de Priest vendia na Inglaterra.



Mas o filme-de-trem é um gênero em si, é uma história que não existiria sem o trem. Tanto pode acolher o mistério detetivesco do Assassinato no Expresso do Oriente quanto a porrada pura de O Imperador do Norte, a guerra padrão de O Expresso de Von Ryane o mensagem natalina de O Expresso Polar. Se já estou falando em cinema a propósito de um álbum de quadrinhos é pela contiguidade que vejo entre os dois, e o fato de que o O Perfura Neve foi filmado em 2013 por Joon-Ho Bong.


A novela gráfica do trio francês é visualmente asfixiante, avançando naqueles corredores estreitos com uma sucessão disparatada de ambientes. Maquinações mafiosas, líderes cruéis, pessoas comuns sem esperança, como nas distopias mais distantes, mais sozinhas e mais geladas.




terça-feira, 19 de maio de 2015

3818) Orson Welles (20.5.2015)






Passei batido pelo centenário de Orson Welles, que foi comemorado no dia 6 de maio passado. Deve ser porque estou focado nos centenários de Rosil Cavalcanti e de Lourival Batista.  Mas Welles é uma esfinge sem fim no meu deserto.  A imagem é adequada, porque ele não construiu uma pirâmide, como Bergman, Chaplin ou Kubrick podem alegar ter feito, mas deixou uma criatura bizarra (sua obra) que o que perde em perfeição ganha em mistério e vida.



Minha primeira impressão dele sempre foi a de alguém ligado à FC, e à inevitável (assim nos parecia) invasão dos marcianos à Terra. Por causa do programa The War of the Worlds ficou associado à obra de H. G. Wells: ele e seu quase-xará têm inclusive um bate-papo que gravaram ao vivo numa rádio. São os dois homens que trouxeram ao mundo o conceito de invasão marciana. O britânico, uma espécie de intelectual do povo, “self-made man” bem ao gosto dos norte-americanos, pragmático, cheio de soluções para que a humanidade dê certo. E o menino prodígio dotado de vastas e divergentes leituras, ego sem limites, e ausência patológica do medo.



Cidadão Kane já foi para os críticos como o melhor filme da história. (Ultimamente, dizem, foi suplantado nessas votações por Um Corpo que Cai de Hitchcock.) Talvez por ser um filme-síntese, composto de perfeições setoriais: a fotografia, a direção de arte, o trabalho de ator, a montagem, a labiríntica e ainda obscura criação do roteiro... É um filme bom em tudo, “uma nova maneira de fazer filmes”, como Orson explicou modestamente ao quase-xará quando este lhe perguntou sobre seu novo projeto.



O Processo e F for Fake são, para mim, tão importantes e tão bons quanto Kane, descontando-se o aspecto histórico deste, claro.  Alguns anos atrás houve uma retrospectiva da obra de Welles no Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia. Foram exibidos os comerciais hilários que ele fazia, de bebida, charutos, sei lá o que. Tinha um lado bonachão e ôver, sabia ser simpático quando havia um cheque no fim do túnel. Sempre soube se virar, teve fases de xeique e fases de showman barato, mas não era um gênio inatingível como Kubrick, era um cara que vivia cercado de gente em restaurantes e clubes.


Gosto de Mr. Arkadin, trama policial vertiginosa no gênero “magnata cosmopolita e encrencadíssimo se envolve com um crime”. Tal personagem sempre parece uma fantasia de Welles sobre si mesmo, caso nadasse em dinheiro. Seus milionários lembram o Hubertus Bigend, dos livros recentes de William Gibson. Todo protagonista de Wells é um leão rampante, o que torna ainda mais notável o que ele consegue em O Processo, onde se dá o contrário.




3817) "O Monstro das Sete Bocas" (19.5.2015)




Inventar uma história que ninguém nunca contou é a ambição de muitos escritores. Não direi que é impossível; mas é como inventar uma posição sexual que nunca foi tentada.  Se o cara conseguir, tem seu mérito, claro, mas estamos falando de duas atividades (literatura e sexo) onde a fruição importa mais do que originalidade. O objetivo da literatura é enriquecer o mundo mental do leitor, e não fazer o autor subir no ranking do que dá para medir.



Fui criado numa casa onde se contavam muitas histórias, e dos quatro filhos dos meus pais pelo menos dois foram inoculados com o vírus. Tem histórias, ouvidas na infância, que lembro até hoje.  Tenho medo de botar num livro e aparecer na mesma hora um crítico provando que acabei de plagiar Paulo Setúbal ou Francisco Marins ou Karl May. Todas as histórias já foram contadas a esta altura, mas como elas são milhões, há sempre um leitor que está lendo aquilo pela primeira vez – e é para ele, sempre, que escrevemos.



Minha irmã Clotilde Tavares lançou agora O Monstro das Sete Bocas (Ed. Jovens Escribas, Natal), um romance de histórias encapsuladas, umas dentro das outras. Um subgênero que vem das Mil e Uma Noites, através, creio, das Mil Histórias Sem Fim de Malba Tahan. Nesse livro, ela conta as aventuras de vários personagens que, a certa altura da própria Demanda, fazem uma pausa para “contar um acontecido”, uma historieta que ilustra algum princípio moral ou faz revelações sobre uma pessoa, sobre um lugar. Nessa dinâmica, o texto fica parecendo aqueles quadros barrocos onde há um quadro-dentro-do-quadro.


É assim que sabemos como D. Ana Francisca, mulher de Renovato, ficou cega; eles recebem em sua fazenda no Cariri paraibano a visita do poeta errante Samuel Romano, que lhes conta a história de Juvenal, que enfrentou o famoso monstro da Caverna das Sete Bocas, o que conduz Renovato e Samuel a uma nova aventura. No seu livro anterior desta série, A Botija (Editora 34, 2003), ela reconta (no meio do romance) a história do Pavão Misterioso. Neste, os personagens cruzam a certa altura o País de São Saruê. Existe uma continuidade inconsútil entre os reinos encantados do cordel e os feudos desencantados onde moram os leitores dos folhetos. O seu mundo é um só, entrar numa dessas histórias é entrar em todas. Estão ligadas por túneis antiquíssimos e em ótimo estado de conservação. É através deles que o mundo das histórias se comunica, se realimenta e se perpetua. Fica longe das vistas dos leitores, que trafegam pela superfície sem ver as passagens subterrâneas que fazem do rico palácio e da pobre cabana dois aposentos diferentes de uma só construção.

sábado, 16 de maio de 2015

3816) 5 teimosias (17.5.2015)










Lionel Shenanigan, 37 anos, irlandês, tipógrafo. Adormeceu uma noite, dormiu até tarde, ressonando saudável, feliz da vida. Começou a ter um sonho e decidiu que queria ficar morando naquele sonho. Fincou pé e não saiu. Os vizinhos deram estimulantes, cafeína. A família continua fazendo barulho, sacudindo ele, “pai, acorde, o senhor está dormindo há cinco dias”, e ele reagindo, “sai, sai, me deixa sonhando, se me acordarem eu dou-lhes uma surra que nenhum de vocês vai achar de novo o caminho de casa”.



São Cireneu de Éfeso (séc. VI d.C.). Criou uma argumentação, com retórica impecável, onde demonstrava a existência de Deus, e muitos estudiosos visitaram a abadia onde habitou, para debater com ele e tentar demonstrá-lo em erro. Da fórmula de S. Cireneu restam numerosas versões, todas incompletas, todas insatisfatórias. Ele a sustentou com três gerações de sábios da Cristandade, e suas últimas palavras foram: “Deus prefere a clandestinidade”.



Matilde Castellani, dona de boate, 67 anos, em algum lugar do interior paulista. Viveu na Amazônia até os trinta, e foi de lá que trouxe um óleo rejuvenescedor, o qual talvez não fizesse efeito nas numerosas clientes a quem ela o vendia, mas fazia efeito nela, que explicava: “Com isso você só envelhece até os 50 anos, aí no ano seguinte você faz 51 mas seu corpo faz 49. Com mais um ano, sua idade é 52 mas seu corpo vai a 48... Eu estou com 67 e um corpo de 33.” Isso tinha uma lógica irrespondível, e lhe rendeu uma grana que deu para comprar a primeira das oito buates.



Sandinho, 8 anos, baiano de Salvador. Fastioso e cheio de luxos com comida, um dia a mãe perdeu a paciência no almoço e disse: “Você só levanta dessa cadeira quando terminar seu prato”.  Choque de vontades, braço-de-ferro entre dois gigantes turbinados, e 48 horas depois já havia van de TV na porta da casa e a aposta virou um reality-show que a cidade acompanhou em tempo real, até que representantes da Cúria Metropolitana, do Ministério Público e da Prefeitura costuraram um armistício que permitiu a ambos sair daquilo com a pose intacta.


Casmiro, 28 anos, camisa 10 e capitão do time do Paradaisinho, de Paradaisópolis. Na reta final do campeonato, reunião com comissão técnica, diretores, alguns amigos escolhidos a dedo, para a estrela do time se sentir à vontade. O veredito técnico: nos últimos oito anos e mais de quinhentos jogos, ele bateu onze pênaltis com o pé direito, e converteu nove; e bateu quarenta e oito pênaltis com o pé esquerdo, e converteu vinte e um. Casmiro deu razão a todos, pediu desculpas, e na decisão do campeonato, quando chegou sua vez na série decisiva, ele meteu o pé com toda confiança.




sexta-feira, 15 de maio de 2015

3815) "Os Outros" (16.5.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 16, será exibido Os Outros(“The Others”, 2001), de Alejandro Amenábar, o mesmo diretor de outro curioso filme fantástico, Abre los Ojos (1997), depois refilmado nos EUA como Vanilla Sky (de Cameron Crowe).

As histórias de casas mal assombradas não devem ser uma exclusividade nossa. Acho que toda cultura, em geral, examina a hipótese da sobrevivência da alma humana após a morte. Uma primeira divisão, portanto, seria entre as culturas que não admitem nenhuma forma de vida após a morte (morreu, acabou) e as que a acham possível. Entre estas, haveria uma segunda divisão, entre as que acham que a alma vai embora para sempre, cumprir seu destino espiritual, e as que acham que a alma pode voltar em algumas circunstâncias, ou é por algum motivo impedida de abandonar seu ambiente físico.

É no meio desta última crença que podemos situar a origem das histórias de casas assombradas, porque na esmagadora maioria destas histórias a assombração consiste em variadas formas de resíduo espiritual de pessoas que viveram ou morreram ali, ou que de alguma forma ficaram presas àquele espaço.

Eu sou dos que não acreditam em nada disso, embora me disponha a mudar de opinião no dia em que eu vir alguma coisa convincente. (Sou um cientista. Cientista não discute com fatos. O problema é que certos tipos de fato só acontecem com quem não é cientista.) As histórias de casas assombradas são, para mim, metáforas da mente humana. Aquela casa é um crânio, um cérebro. É lá dentro que estão aparecendo coisas que se recusam a morrer, a ir embora.

Os Outros (The Others) é um filme tenso, primorosamente fotografado, e que usa os espaços internos da casa como o principal vetor de inquietação para o personagem, a câmera, o espectador; uma lição de clássicos como Os Inocentes (1961) de Jack Clayton ou Desafio ao Além (1963) de Robert Wise. A “casa nova onde a família vai morar” é um espaço hostil, misterioso, cheio de ameaças. Quando a câmera se põe em movimento por dentro dela, basta isso para produzir o aperto no peito. É um filme de suspense sobrenatural com uma reviravolta final do tipo puxada-de-tapete. Como se alguém estivesse avisando, aos céticos que duvidam dos fantasmas: “Os vivos precisam aceitar que os mortos estão entre nós, e aprender a conviver com eles”.





3814) Ser professor (15.5.2015)



Uma lojinha estreita, de uma porta só; uma tenda. Não a tenda “barraca de acampamento”, mas a tenda que é um quartinho instalado no rés-do-chão de um sobrado ou de um edifício de poucos andares sem elevador. Um pé-de-escada espaçoso e com pouca circulação de gente.  Em certa década, um rapaz de bigode preto começou a usar aquele espaço para prestar pequenos serviços de consertador de alguma coisa: sapatos, relógios, motocicletas, tudo que na vida humana precisa de manutenção e reparos. O mundo pisca um olho, e anos depois quem atende ali já é um velho de barba branca.

Ser professor é um pouco assim. (Claro que tem o outro lado, o rosto solar, a faceta operística, o viés peroratório do magistério. Quem não gosta de auditório cheio? Duzentos clientes, todos precisando de pelo menos meio ponto!) Mas tem o lado lunar do professorado, que é justamente o que na minha utopia (este é um conto de ficção especulativa) eu chamo o “professor de tenda”.

A tenda pode ser em qualquer canto. Centro da cidade, ou transversal da avenida principal do bairro. Ele está ali sentado, às três da tarde, botando meia sola num calçado qualquer, quando chega um casal de alunos, ele indica uns tamboretes, os dois sentam. Precisam fazer um trabalho, o assunto é tal e tal. O mestre escuta, a boca segurando os pregos que os dedos recolhem de um em um, enquanto ele martela a sandália feminina em decúbito. No último prego ele pigarreia, manda gravar, pronuncia meia dúzia de títulos, números especiais de revistas, edições específicas. Dá o email para acompanhamento da consulta. Erguem-se todos, ele busca a maquininha, a moça passa o cartão, guarda o recibo – hesita – sorri – tira um livro da bolsa: “O senhor podia assinar pra mim?”.  “Claro,” diz ele, abre o livro devagar, dá uma risada: “Você é como eu, não é? Lê sublinhando.”

Na parede desse professor há um quadro-negro tipo tabela, com a lista dos serviços, e a lista dos preços, que nunca sobem mais do que o necessário. Um metalinguístico calendário-de-oficina com Rose di Primo no auge. Um cartaz (original) de filme, renovado toda segunda-feira. Há um espelho com uma foto recente dele pregada bem no centro. Um alvará caligrafado por Steinberg. Um termômetro e um barômetro solidariamente lado a lado. Uma vitrine (o casal quase não se desgruda dali) com alguns manuscritos dele, e primeiras edições.  Uma telona digital, ladrilhada em quatro: noticiário via cabo, browser, canal Classimovies e uma fractal em loop, bem repousante. Um assum preto digital cantando preso noutra telinha. O diploma de professor emoldurado. A flâmula com o escudo do meu time do coração.




quinta-feira, 14 de maio de 2015

3813) "Ensaio sobre a Cegueira" (14.5.2015)



Este romance de José Saramago, de 1995, lembra O Dia das Trífides de John Wyndham, cuja tradução foi publicada em Lisboa em 1962, na Colecção Argonauta. Há quem lembre também “A escuridão”, conto de André Carneiro (1963), que incluí na minha antologia Páginas de Sombra (2003). Todas essas histórias de “a humanidade ficou cega” percorrem caminhos parecidos, às vezes previsíveis, inevitáveis, pois as situações são basicamente as mesmas.  O que importa é o que cada autor consegue extrair delas.

Saramago mostra uma cegueira que é branca. Não uma cegueira de trevas, mas de luz, que lembra o testemunho de Jorge Luis Borges: “O preto é uma das cores que fazem falta a um cego. (...) Para mim, que estava acostumado a dormir no escuro, foi bastante incômodo, por muito tempo, ter que dormir nesse mundo de neblina esverdeada ou azulada e vagamente luminosa que é o mundo do cego.”

O núcleo de personagens principais se cria em torno do episódio inicial. Um homem fica cego ao volante; outro conduz seu carro e o deixa em casa, mas logo em seguida rouba o carro do que ficou cego, e mais adiante cega também. O “primeiro cego”, como passa a ser chamado, vai se consultar com um oftalmologista, e este consultório será o centro de propagação da cegueira, porque atinge os demais pacientes, todos com algum problema nos olhos: a rapariga de óculos escuros (como se trata de uma garota de programa, o termo português não destoa), o velho com a venda no olho, o menino estrábico.  Guiados pelas mulher do médico, que por alguma razão não cegou, são eles a constelação de luzes apagadas que iremos seguir até o capítulo final.

O livro não diz nenhum nome próprio: nem de pessoa, nem de lugar, nem de produto. É mais uma tentativa (tem havido muitas, ultimamente) de romance que evita dizer onde se passa. Ouvimos falar em prédios, consultórios, supermercados, quartéis, praças, e não vemos um nome sequer. Tudo que se conta neste livro (e que automaticamente visualizamos em Lisboa, por ser português o autor) poderia ter acontecido em Campina Grande.

Os primeiros cegos são trancafiados num manicômio desativado, e ali seguem-se episódios de sujeira e violência que lembram o Anjo Exterminador de Buñuel, lembram as memórias de campos de concentração. Saramago é um escritor de viés pessimista, chamado de “sal-amargo” por mais de um resenhador. O mais admirável é o modo como ele consegue tornar plausíveis, numa situação espantosa e desumanizadora como esta, os pequenos gestos de solidariedade dos seus personagens. As pequenas coragens, pequenas compaixões, compreensões e gentilezas: as últimas coisas humanas que se extinguirão.






terça-feira, 12 de maio de 2015

3812) O que é ser analfabeto (13.5.2015)



Um amigo meu passou uma semana no Japão. “Descobri o que é ser analfabeto,” disse ele. Pensou que tudo lá tinha letreiro em inglês, mas tem muito pouco. “É terrível você ficar olhando aqueles insetozinhos escritos, saber que aquilo significa alguma coisa, mas não ter nenhuma pista. Nunca senti tanta falta das linguagens ideográficas, como os hieróglifos, onde pelo menos a palavra passarinho parece um passarinho”. Ironia maior pelo fato de que o japonês começou como linguagem ideográfica, mas foi se sofisticando. Hoje, alguém pra ler precisa ser alfabetizado.

Viver numa cidade grande e não saber ler é como ser jogado no mar com os braços amarrados. Em “Um Assassino entre Nós" ("A Judgement in Stone", 1977), Ruth Rendell conta a história de uma empregada doméstica inglesa que, por motivos variados, nunca se alfabetizou e chegou à idade adulta sem que ninguém percebesse essa deficiência. Numa infância desorganizada pela guerra, Eunice Parchman trocou várias vezes de escola, interrompeu os estudos, e durante a adolescência seu objetivo não era mais aprender a ler, e sim esconder que não sabia. E (diz a autora) a vantagem de ser analfabeto é que o indivíduo adquire uma excelente memória visual e se força a ser capaz de lembrar de tudo. Povos inteiros fazem isto desde que o mundo é mundo.

Uma velha piada apócrifa diz que Rui Barbosa saiu de casa às pressas, esqueceu os óculos, e ao chegar à rua São Clemente perguntou a um homem humilde, na calçada, que bonde era aquele que estava se aproximando. O homem respondeu: “Desculpe, eu também não sei ler”. Quem não sabe ler geralmente alega “um problema na vista” e pede para alguém lhe repetir em voz alta bilhetes, recados, tudo. Aprende a distinguir os números, acostuma-se a reconhecer palavras nas placas e letreiros públicos, mas não conseguiria reproduzi-las com lápis e papel, se lhe pedissem. Vive (diz Rendell) “numa misteriosa e sombria liberdade feita de sensações, instinto, e ausência da palavra impressa”.

O analfabeto que precisa esconder sua condição vive num estado permanente de alerta, porque de um instante para outro podem tentar obrigá-lo a decifrar alguma coisa; precisa de um repertório permanente de desculpas, evasivas. Acostuma-se a perguntar. Cultiva fama de distraído, esquecido. Conversa pouco, para que lhe façam menos perguntas. Diz Ruth Rendell: “O hábito de se isolar estava entranhado nela; não era mais consciente. Todas as fontes de calor humano e gestos de afeição e de entusiasmo tinham secado. O isolamento era algo natural agora, e ela não entendia que aquilo começara quando ela começou a se afastar da palavra impressa, dos livros, das coisas escritas à mão”. 



segunda-feira, 11 de maio de 2015

3811) Mario Quintana e Ray Bradbury (12.5.2015)



(Norman Rockwell, Looking out to sea, 1919)



Numa entrevista concedida a Edla Van Steen (incluída em Da Preguiça como Método de Trabalho, 1987) Mario Quintana dizia: “O que de melhor e de pior se publica atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter escrito.”  

Um elogio assim talvez baste para justificar minha tentativa de aproximação entre os dois escritores, que de fato têm muita coisa em comum. Bradbury é chamado por muitos “o poeta da FC” pela sua prosa rica de metáforas, o olhar lúdico com que descobre ângulos imprevistos em qualquer coisa, sua insistente fascinação com a infância. Sua obra lembra (mais do que a de Garcia Márquez) a frase de Garcia Márquez quando dizia: “Meu avô me contava histórias. Morreu quando eu tinha oito anos. Nunca mais aconteceu nada interessante em minha vida”.

Quintana (1906-1994) não tinha fôlego de ficcionista. Era bom prosador, como provam suas numerosas crônicas, suas ótimas traduções (Proust, Balzac, Virginia Woolf, Voltaire, Fredric Brown, etc), seus numerosos “fragmentos de almanaque”, uma forma específica que ele cultivou intensamente ao longo da obra. Sua aparente ingenuidade de menino tem muitos pontos em contato com Bradbury (1920-2012), inclusive numa certa rejeição aos aspectos mais invasivos da tecnologia. Ambos tinham fascínio por outros planetas, mas não por espaçonaves. Pelas perguntas da ciência, não por suas respostas.

Quintana dedicou ao norte-americano um poema (“Ray Bradbury”) em Esconderijos do Tempo (1980), dizendo que foi ele “o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas”. Fala (numa enumeração nostálgica que provavelmente deixaria Bradbury coçando a cabeça meio perplexo) no Menino Jesus, nas princesas, nos reis “heráldicos como cartas de jogar”, em São Jorge, em Dom Quixote, e depois finaliza:

Todo esse encantamento de uma idade perdida 
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar 
e os nossos antigos balõezinhos de cor 
agora são mundos girando no ar. 
Depois de tantos anos de cínico materialismo 
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha 
que nos vai desfiando suas histórias à beira do abismo 
-- e nos enche de susto, esperança e amor.

Não sei até que ponto o autor de O País de Outubro se agradaria em ser chamado de “Old Grandma”, mas os dois partilham a mesma sentimentalidade, a recusa ao materialismo, a lealdade para com o fraco e o pequeno, o humor negro sem crueldade, o jeito misto de menino e ancião, algo que ambos tiveram constantemente de uma ponta à outra da vida. 





sábado, 9 de maio de 2015

3810) O autor e o editor (10.5.2015)



(Pierre-Jules Hetzel e Jules Verne )

Um livro recente de William Butcher (Jules Verne inédit: les manuscrits déchiffrés, Lyon, ENS, 2015) mostra o resultado de anos de pesquisa nos manuscritos de Jules Verne. Na segunda metade do século 19 Verne foi o autor mais popular da França e um dos mais populares do mundo. Ao conhecer o editor Jules Hetzel, sua carreira tomou um rumo definitivo. Juntos os dois conceberam uma série de livros, sob o título geral de “Viagens Extraordinárias”, em que romances de aventuras serviriam de pretexto para passar informações científicas para leitores jovens, num momento histórico em que a política, a economia e a ciência trabalhavam em conjunto para expandir mundo afora o domínio europeu. A relação Verne/Hetzel é sempre citada quando se fala de projetos editoriais a quatro mãos; e o editor francês teve um papel importante no desenvolvimento do “romance científico” de sua época, tal como Hugo Gernsback e John W. Campbell teriam no meio século seguinte, na pulp fiction dos EUA.

O estudo de Butcher parece confirmar algo que vem sendo discutido há anos: Hetzel interferiu com mão pesada na escrita de Verne, forçando o autor a dirigir-se a um público pequeno-burguês, doméstico, adolescente, dando ênfase nos livros ao aspecto educativo e de formação do caráter, e extirpando tudo que pudesse ser polêmico ou desagradável. A prova mais evidente disso é sua recusa em publicar o distópico e sombrio Paris no Século XX, que Verne lhe apresentou em 1863 e guardou no cofre após a recusa. (O livro só foi publicado em 1994.)

Uma resenha de Nicolas Bareit (aqui: http://lectures.revues.org/17836) comenta os cortes promovidos por Hetzel em longos trechos e capítulos inteiros dos manuscritos que Verne lhe apresentava. Com 138 reproduções de páginas manuscritas, desenhos, esquemas, resumos, etc., o livro mostra o processo de trabalho do autor e permite comparar seu primeiro texto com o texto final publicado.

Outros estudos têm elogiado o trabalho do editor em enxugar a prosa abundante de Verne, o excesso de detalhes técnicos que ele (como todo autor que pesquisa a fundo) teve trabalho para recolher e não queria deixar de fora. Agora, lança-se nova luz sobre o outro lado. Um membro do grupo Le Club des Savanturiers, no Facebook, comentou: “Os capítulos suprimidos e as passagens inéditas revelam um Nemo heróico, um Fogg criminoso, uma Aouda despida, um Axel grande amante, um Strogoff altamente politizado. Em uma palavra: o Jules Verne existente antes do trabalho editorial geralmente iníquo de Jules Hetzel. Os leitores, incluindo-se aí os críticos, conheceram apenas um Verne leve, censurado, mutilado na própria carne".




sexta-feira, 8 de maio de 2015

3809) "Santa Sangre" (9.5.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate comigo e o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 9, será exibido Santa Sangre (1989) de Alejandro Jodorowsky, cineasta brotado na onda do cinema underground dos anos 1970, os chamados “midnight movies”. Jodorowsky é uma figura arlequinal nas artes, tendo se envolvido com literatura, teatro, cinema, quadrinhos; foi parceiro de Moebius e de Fernando Arrabal. Na ficção científica é conhecido pelo seu projeto frustrado de adaptar o romance “Duna” de Frank Herbert, que não resultou em filme, nunca decolou, mas foi uma certa injeção de ambição imaginativa no gênero, pelo menos na Europa.

Dentre os seus filmes oficiais, El Topo (1970) é um faroeste iniciático, A Montanha Sagrada (1973) é uma jornada-do-herói controlada por um duende metalinguístico, e Santa Sangre é um melodrama mundo-cão, grotesco e surpreendente, uma mistura de filme-de-terror-B-mexicano baseado em pulp-fiction estilo “weird menace”. Tem pontos de contato com um certo tipo de cinema “udigrudi” que se fazia no Rio e São Paulo na época. Um cinema meio sujo, anárquico, e que mesmo numa das raras superproduções só produz na pindaíba. Filmes pululantes de marginais, artistas de circo, fanáticos religiosos, bandidos excêntricos, militares, padres, políticos, mutilados, anões, deficientes físicos... Tipos inquietantes, meio caricaturais. Violência física, mas esfriada pela imprevisibilidade do enredo.

Santa Sangre tem momentos daquele dramalhão com ressonâncias freudianas que se vê em Nelson Rodrigues ou em Buñuel. Deste, principalmente, tem aquele gosto pelo excessivo, pelo gótico, pelas imagens bizarras sem explicação. Tem alguma coisa daquele exagero mórbido do teatro de Grand Guignol ou de algum dos vários tipos de teatro da crueldade (ou da violência) que foram tão praticados naquela época.

A certa altura o filme faz lembrar o conto de Maupassant, “O artista”, em que um atirador de facas num circo confessa ter vontade de matar a esposa, que o acompanha no número, mas diz que não consegue “errar”. O cinema de Jodorowsky é muito referencial, cheio de alusões, citações, homenagens, paródias a Fulano ou Sicrano. Mas quando ele emula Hitchcock, não é de uma maneira previsível, como acabaram se tornando os filmes de Brian de Palma, onde a referência fica sendo a razão de ser da cena. Jodorowsky insere a referência, mas não é nela que a cena está focada.