quinta-feira, 30 de abril de 2015

3802) "Twin Peaks" (1.5.2015)



Completam-se 25 anos do lançamento da série de TV Twin Peaks, criada por David Lynch. Há uma continuação em projeto, se bem que o diretor, como toda estrela que se preza, esteja fazendo um certo foi-não-foi a respeito de orçamento. Estou aproveitando para dar uma olhada geral na série, pois na época vi vários episódios fora de ordem, tive que ler na imprensa o enredo, portanto não considero que tive a experiência estética verdadeira de quem vê a história por ordem cronológica desde o começo. Estou tendo agora, quando revi em alguns dias a primeira temporada inteira.

Twin Peaks é uma cunha do “uncanny” enfiada na fórmula-padrão do seriado de TV norte-americano. É um Dallas refilmado pelo Buñuel do México, com paisagens do Maine de Stephen King. Menos inquietante / espantoso / perturbador / violento / surreal do que filmes como Eraserhead (1976), O Homem Elefante (1980), Veludo Azul (1986) ou Coração Selvagem (1990), que ele àquela altura já tinha feito, no cinema. Lynch desembarcou na TV com o cacife desses filmes demolidores, e se apropriou do formato de narrativas tipo Peyton Place, sobre as mazelas ocultas por baixo do esmalte, xampu e batom de uma cidade perfeita nos moldes norte-americanos. Só que Peyton Place, Dallas e outros descascam apenas a casca de fora dessas feridas. Lynch afunda o bisturi e puxa lá de dentro alguma coisa que não vemos porque até a câmara se afasta, para mostrar a paisagem através da vidraça partida.

A música de Angelo Badalamenti produz um clima de ansiedade crescente, que vai surgindo, vai cercando, vai envolvendo.  Lynch sabe dar um clima ominoso a uma cena banal, como duas pessoas conversando, apenas com o uso de uma massa sonora subliminar que parece um tsunami de ameaça prestes a arrastar aquelas pessoas para longe.  Sua trilha lembra Philip Glass, pelo uso recorrente de pequenas frases musicais aparentemente simples, assobiáveis, células melódicas que grudam na memória; e lembra Sérgio Leone pelo “crescendo” épico que arrebata tudo e todos, uma música de melodrama sem constrangimento, talvez porque se trate de um melodrama existencial e metafísico e as possibilidades de sentimentalismo água-com-açúcar estejam canceladas desde o primeiro acorde.

Uma das maneiras de usar o melodrama na narrativa de hoje é não se curvar a ele, não lhe dar as rédeas, mostrar desde logo ao público que o lado melodramático daquela história é apenas um elemento a mais, mas que o diapasão está sendo fornecido por outro conjunto de intenções. O melodrama é a cobertura do bolo, mas o que há por baixo dela é outra coisa, que só será descoberta na hora da mordida.




quarta-feira, 29 de abril de 2015

3801) Pequenos personagens (30.4.2015)



O pequeno personagem é aquele que aparece pouco, em segundo plano, mas nem por isso tem que ser um personagem menor ou sem importância. Às vezes aparece em apenas uma cena, mas é bastante para se tornar inesquecível. 

No cinema, isso fica muitas vezes por conta do ator. O ator Ned Beatty fez um papel secundário em Rede de Intrigas (“Network”, 1976) de Sidney Lumet, aparecendo em apenas uma cena do filme, e concorreu ao Oscar de Melhor Coadjuvante. (Não que eu ache um Oscar uma grande coisa, mas eles lá acham.) Dizia ele: “Nunca recuse um trabalho, por menor que pareça. Trabalhei neste filme um dia apenas, e fui indicado ao Oscar”.

A literatura parece mais propensa a valorizar os personagens menores. No livro de R. L. Stevenson O Médico e o Monstro, o Dr. Jekyll tem uma casa cheia de criados que pouco aparecem; mas o romance Mary Reilly (1990) de Valerie Martin, usa como protagonista uma dessas empregadas, e reconta o drama do ponto de vista dela. 

Algo parecido foi feito recentemente no romance francês Meursault, contre-enquête (2013) de Kamel Daoud, cujo foco é no irmão do árabe assassinado na praia pelo narrador de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus.

No prefácio de seu romance O Mundo de Rocannon (1966), Ursula LeGuin explica seu protagonista lembrando que ele aparecia rapidamente no conto “O Colar de Semley” (1964), como um etnólogo que a heroína encontra noutro planeta. Depois (diz ela) ele começou a surgir na sua mente, dizendo: “Ei, eu sou Rocannon! Conte minha história!”, e ela o fez. Muitos personagens hoje famosos fizeram sua primeira aparição em circunstâncias parecidas.

Um personagem shakespeariano inesquecível é Falstaff, que aparece nas duas partes de Henry IV (1597?, 1599?) e As alegres comadres de Windsor (1602). Em 1966, Orson Welles lhe deu o papel de protagonista do filme Chimes at Midnight, aproveitando cenas das peças e trazendo o personagem para o foco principal. 

Algo parecido fez o dramaturgo Tom Stoppard quando dedicou uma peça inteira a dois personagens bem secundários de Hamlet, em Rosencrantz and Guildenstern are Dead (1966). São dois amigos do príncipe Hamlet que fazem breves aparições na peça, e no texto escrito por Stoppard eles se tornam o ponto de vista através do qual a história do Reino da Dinamarca é contada. 

Desenvolver um personagem secundário de uma obra conhecida poderia ser um bom exercício de oficina literária, para mostrar como uma mudança de ponto de vista, sem alterar os fatos concretos, pode determinar uma reviravolta no significado da história original. Nenhuma história é a mesma quando os fatos são narrados por outro ponto de vista.





terça-feira, 28 de abril de 2015

3800) Traduzir FC na China (29.4.2015)



Um manuseado trocadilho italiano diz: “Traduttore, tradittore”. Tradutor: traidor. Vi recentemente uma versão em espanhol dizendo que este estóico profissional “no es um traidor, sino um traedor”. Um trazedor: alguém que traz para nosso alcance algo que estava lá do outro lado do mundo. Gostei mais desta. Ambos os epítetos, aliás, dão certinho com o que tradutores chineses andam fazendo com livros de ficção científica ocidentais.

Dizem que a China tem um público de um bilhão de leitores. Lá, a FC tem historicamente um perfil didático, educativo, voltado para a divulgação da ciência entre os jovens. Ambiente mais que propício, por exemplo, para se traduzir Jules Verne. A tradução, contudo, enfrenta problemas, principalmente de ordem cultural – o leitor sabe pouco a respeito do Ocidente. Uma matéria de Ken Liu no saite io9 (aqui: http://tinyurl.com/ljshjas) mostra a verdadeira paráfrase realizada no primeiro parágrafo de Da Terra à Lua de Jules Verne (1865).

O texto original diz: “Durante a Guerra da Secessão dos Estados Unidos, um novo clube, muito influente, foi criado na cidade de Baltimore, em plena Maryland”. Uma tradução chinesa, feita via japonês, diz: “Quem já estudou a geografia e a história do mundo conhece um lugar chamado América. Quanto à Guerra da Independência americana, qualquer criança sabe que foi um acontecimento que fez o mundo estremecer, um feito que deve ser frequentemente relembrado e nunca esquecido. Bem: entre todos aqueles Estados que participaram da guerra, um deles se chamava Maryland, cuja capital, Baltimore, era uma famosa cidade fervilhante de multidões e com um intenso tráfego de cavalos e carruagens. Nessa cidade havia um clube, de magnífica aparência, e quando alguém via a bandeira americana hasteada e tremulando ao vento, experimentava um sentimento de admiração e reverência”.

O único erro factual é confundir a Guerra da Secessão com a Guerra da Independência; mas a necessidade de fornecer contexto a adolescentes chineses leva o tradutor a uma completa reescrita do texto original. Muitas vezes um tradutor insere duas ou três palavrinhas inócuas para esclarecer um detalhe no próprio texto, de maneira fluente, evitando as notas de pé de página, que muitos editores e leitores detestam. Essas interferências devem ser guiadas pelo bom senso e pelo desconfiômetro. Verne é um dos autores mais mutilados da história. Muitas edições “para jovens” suprimem por inteiro as explicações químicas ou físicas que ele queria transmitir aos jovens de seu tempo. Edições assim estão ainda no estado selvagem da tradução literária.



segunda-feira, 27 de abril de 2015

3799) Game of Thrones 2015 (28.4.2015)



A série Game of Thrones (HBO) começou sua quinta temporada há três fins de semana. Há quem ache a série inferior aos livros, mas da minha parte tenho feito desde o início o caminho inverso. Vejo a série primeiro, e depois leio os capítulos correspondentes aos trechos que mais me interessam, em busca de maior riqueza, textura, espessura, as armas imbatíveis do texto literário.

GoT está para a Fantasia Heróica tradicional tipo O Senhor dos Anéis um pouco como o bang-bang italiano estava para o faroeste clássico dos EUA, onde havia uma divisão mais clara entre os bons e os maus, os certos e os errados. Os westerns spaghettis trouxeram maior cinismo, maior sujeira (o western clássico era limpinho demais, feito-em-estúdio demais) e maior realismo ao gênero. Na fantasia, somos forçados a constatar que a política do mundo moderno não parece muito com as epopéias alegóricas de Tolkien: parece, sim, com o jogo de sacanagens, traições, vinganças, crueldades e covardias que vemos entre as “elites brancas” de Westeros.

A lenta progressão da história induz (em nós) expectativas de vitórias ou de desgraças que não se confirmam. Essas guinadas ressaltam o modo imprevisível como o entrechoque de variáveis faz mudar as regras do jogo no transcorrer da partida. Na luta pelo poder em Westeros, cada aparente triunfo pessoal (Snow eleito comandante da Guarda, Arya refugiando-se em Braavos) cobra um sacrifício que não foi previsto. Sansa é levada de volta ao antigo castelo de sua família, mas o preço é casar-se com Ramsay Bolton, um dos psicopatas mais sádicos da série (há vários). E os autores não desdenham um clichê: se um personagem está fugindo incógnito e pede para ir disfarçado a um lugar público, a probabilidade de que seja descoberto paga 1 por 1 na Bolsa de Apostas.

O formato de série parece dar aos diretores mais folga para desenvolver efeitos dramáticos que precisam de tempo: suspense, expectativa, surpresa, reviravolta de caráter dos personagens. Nem sempre acontece. Um filme de duas horas em geral fecha seu foco num número menor de pessoas, e alonga os minutos sempre que necessário, mas uma série assim é um mural, e num mural não existem close-ups. Isso nos dá o paradoxo de numa temporada de dez episódios de 1 hora vermos cenas com excelente potencial dramático serem resolvidas às pressas pela necessidade de passar logo para a próxima linha narrativa, porque são muitas. Não importa. Para mim, a série fornece o impacto visual dos cenários e dos rostos, o carisma dos atores, o arrebatamento rítmico dos episódios bem construídos. Depois, vai-se ao livro pela substância, pela essência; a Coisa em Si.



sábado, 25 de abril de 2015

3798) A carência retórica (26.4.2015)



Uma coisa que me inquieta nas discussões das redes sociais e nos comentários de websaites é a imensa truculência, grosseria e estupidez com que as pessoas se exprimem quando estão discutindo algo que as incomoda. 

A Internet levantou o tapete do Brasil e nos mostrou o que estava oculto há muitas gerações. A liberdade de “dizer o que bem entender” tem sido usada por essas pessoas para insultar e agredir verbalmente qualquer bode expiatório que passar pela sua frente. E não venham me dizer que é a “Direita hidrófoba” que faz essas coisas. É todo mundo, de um extremo ao outro, e principalmente nos dois extremos.

Vou deixar de lado os que são meio psicopatas, os que aceleram o carro pra cima de uma passeata, os que se desentendem numa fila e daí a pouco matam um desconhecido com seis tiros, os que se juntam para linchar uma pessoa que foi confundida com outra. São pessoas em ebulição permanente, a ponto de explodir, e para elas tudo é pretexto. 

Casos perdidos, e não é neles que penso. Penso nas pessoas que não são assim (entre as quais amigos, conhecidos meus) e que “do nada” produzem frases de uma violência e um teor ofensivo que... não vou dizer que me assustam, porque não me assusto com nada, e em matéria de violência verbal sou capaz de entestar com qualquer um. Mas não creio que a “indignação cívica” baste para justificar não apenas as coisas que são ditas, mas o vocabulário rasteiro, brutal com que são ditas.

Por que o fazem? Chamo isso de carência retórica. Pessoas que precisam exteriorizar um sentimento muito intenso que brota numa região primitiva, pré-verbal. 

Tive um amigo que era o entusiasmo em pessoa, era um tipo como Maiakóvski (“sou coração dos pés à cabeça”). Chegava com um livro e dizia: “Esse livro é a coisa mais absolutamente genial e sensacionalmente maravilhosa que eu já vi em toda minha vida”. Dizia variantes disso, dez vezes por dia, com dez coisas diferentes. Eu dizia: “Rapaz, por que tu não inventa um elogio que prescinda de hipérboles?” (eu falava assim aos 18 anos).

Somente entusiasmos desse tipo, só que de repulsa, justificam expressões como as que a gente vê nas redes sociais, escritas por gente que sabemos educadas, por gente que sabemos terem bons sentimentos e bom caráter (coisas que têm apenas um pouco a ver com opções políticas), mas que parecem estar sempre de palavrão em riste para desferi-lo na direção de um político, um artista, uma pessoa que saiu no jornal devido a um acontecimento qualquer. 

Essa carência retórica mostra, acima de tudo, que o que o indivíduo diz passou por longe de sua consciência. Brota direto do lugar onde alguém lhe cravou os implantes mentais.





3797) "Haxan, a feitiçaria" (25.4.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje será exibido Haxan – a Feitiçaria Através dos Tempos de Benjamin Christensen. Realizado em 1922, é uma co-produção dinamarquesa-sueca inspirada no famoso livro O Martelo das Feiticeiras (“Malleus Maleficarum”), o guia dos interrogadores de bruxas do século 15. Foi o filme escandinavo mais caro de sua época. O diretor pesquisou uma imensa iconografia relacionada a deuses, demônios, bruxas, duendes, criaturas monstruosas, espíritos malignos, e muitos episódios foram encenados com atores.

Haxan não é um filme de ficção nem é um documentário tradicional. Sua pesquisa tem um perfil até didático (é engraçado ver hoje a “vareta do professor” indicando os detalhes das imagens mencionados no texto). As tentativas de dramatização de situações não chegam a ganhar um caráter ficcional, são como ilustrações animadas. Xilogravuras, iluminuras, desenhos: o diretor reuniu uma impressionante quantidade de material.

Há uma corrente importante do fantástico literário (e cinematográfico) que nasce desse caldo espesso de milhares de anos de superstições, animismo, violência, preconceitos, alucinações coletivas.  A escritora Kathryn Cramer disse certa vez que “o Fantástico é a linguagem da mente submetida a extrema tensão”. É o transbordamento do inconsciente sobre o consciente, no indivíduo, e, coletivamente, o transbordamento de milhares de anos de superstição sobre a racionalidade duramente conquistada em séculos mais recentes.  Temos hoje um verniz de ciência e pragmatismo cobrindo milênios de alucinação, fanatismo, terrores religiosos.


Haxan reproduz os aspectos mais sombrios desse mundo em que seres humanos, diabos, animais e deuses se transformavam uns nos outros mediante uma fórmula mágica, uma poção, um ritual. É o mundo das feiticeiras de Salem e do Macbeth de Shakespeare, do Inferno de Dante e de Anne Rice. Estamos longe do fantástico sofisticado, na linha de Jorge Luís Borges, em que se discutem aspectos e paradoxos do espaço e do tempo. Haxan é uma viagem ao interior da mente humana e aos pesadelos que ela guarda nos seus porões. Não são os paradoxos delicados e inquietantes de René Magritte ou de Salvador Dali: é o mundo de Hieronymus Bosch, repleto de duendes, demônios, seres híbridos de animal e gente. As criaturas que abrem os olhos quando apagamos a luz. 



sexta-feira, 24 de abril de 2015

3796) O fantástico todoroviano (24.4.2015)


Tzvetan Todorov, em sua Introdução à Literatura Fantástica, produziu uma das mais úteis tentativas de definição do Fantástico. Tão útil que acabou se tornando um problema para críticos e teóricos. Muitos acham que a maneira como Todorov via o gênero era “a maneira certa”, e que as outras são erradas. O que é um engano, claro. Eu chamo a fórmula criada por ele “O Fantástico Todoroviano”, pois abarca uma boa parte do gênero, mas não o esgota. Nenhuma fórmula esgota um gênero, que pode (como o próprio Todorov admitia) ter seu perfil modificado pelo aparecimento de uma obra diferente de todas as anteriores.

Todorov reconhecia dois extremos numa escala das narrativas do sobrenatural. Num extremo, o Maravilhoso: histórias totalmente irreais, imaginárias, sem vínculo com nossa realidade. No outro, o Estranho, histórias que têm algo de insólito ou extraordinário, mas no final admitem uma explicação realista, não-sobrenatural. O Fantástico (para ele) seria uma oscilação intermediária, histórias onde o personagem, ou o autor, ou o leitor, ou os três, não conseguem decidir se os fatos narrados são de fato sobrenaturais (o que levaria a história para o terreno do Maravilhoso) ou têm explicação realista (o que a levaria na direção do Estranho).

O livro original de Todorov é de 1970. Duvido que ele não conhecesse então a famosa Antologia da Literatura Fantástica de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo (São Paulo: Cosac Naify, 2013, tradução de Josely Vianna Baptista). No prólogo (a antologia é de 1940) diz Bioy Casares:

“Os contos fantásticos podem ser classificados, também, pela explicação: a) os que se explicam pela ação de um ser ou de um fato sobrenatural; b) os que têm explicação fantástica, mas não sobrenatural (“científica” não me parece o adjetivo conveniente para essas invenções rigorosas, verossímeis, à força de sintaxe); c) os que se explicam pela intervenção de um ser ou de um fato sobrenatural mas insinuam, também, a possibilidade de uma explicação natural (“Sredni Vashtar”, de Saki); os que admitem uma alucinação explicativa. Essa possibilidade de explicações naturais pode ser um acerto, uma complexidade maior; geralmente é uma fraqueza, um subterfúgio do autor, que não soube propor o fantástico com verossimilhança.”

Note-se que a quarta via sugerida por Bioy (“alucinação explicativa”) pode perfeitamente estar contida na terceira, pois uma alucinação seria uma “explicação natural” – o que vimos é um delírio do personagem. Não tenho à mão agora o livro de Todorov para ver se ele cita Bioy, mas me parece clara a influência, ou no mínimo a convergência de raciocínio entre os dois.



quinta-feira, 23 de abril de 2015

3795) Contracapa de Instagram (23.4.2015)



escrever uma prosa que se choca com o osso e nem toca a pele  &  tem pessoas que tratam a gente como poupança, na hora em que precisar sabe que vai ter  &  as grandes cidades estão cheias de viajantes-no-Tempo analfabetos, em busca de emprego  &  nenhum aprendiz deixa de ser aprendiz quando se torna um mestre  &  o pulo do gato o leva à terceira margem do rio, assim como o salto do cavalo o liberta da Planolândia  &  os idealizadores dos bulevares temiam a guerrilha em surdina e não contavam com o estouro do vândalos  &  o mundo piscou o sol e de repente era outro dia  &  o alquimista está para a Química assim como o físico quântico está para a Física  &  torcer contra a Copa e torcer pela Seleção exigem que o cérebro vire um anel-de-Moebius  &  tem gente que pega o ônibus errado e fica teimando que o motorista não sabe o caminho  &  um aborígene reunindo toda sua coragem e bebendo da água de um poço ainda sem nome  &  o cinema é a domesticação do relâmpago  &  tenho medo de qualquer animal pequeno demais para eu montar nele  &  um casal são dois abismos abraçados, cada um com medo de cair dentro do outro  &  tem gente que brada pela ética, considera o dever cumprido e cai na gandaia  &  melhor do que ser titular é ser o reserva que entra no fim e decide  &  “catarse” é quando todos os espectadores de uma peça de teatro assoam o nariz ao mesmo tempo  &  tem aumentado a demanda de perucas com cérebro acoplado  &  tão mal camuflado quanto um submarino amarelo  &  preciso de um espelho quebrado que todo dia de manhã faça jus aos meus cacos  &  a aparência é uma parte da essência, mesmo quando se esforça para ser seu contrário  &  há momentos em que o equilíbrio geral de uma situação importa mais do que a aplicação localizada de uma virtude qualquer  &  quando a gente vê alguém que sempre acerta começa a achar que ele acerta sempre  &  simbolismo é ver uma imagem extraordinária e usar a retórica para transformá-la num conceito banal  &  um rio é tudo quanto acontece entre a nascente e a foz  &  eita, Brasil, parece que vem por aí mais meio século de divã  &  como diria Neném Prancha, pena de morte é uma coisa tão séria que o carrasco deveria ser o Presidente da República  &  o mundo é um oceano de idéias esperando que a gente abra os olhos e os ouvidos para invadir a mente  &  a Pátria é a peleja dos sem teto contra os sem limite  &  se bons sentimentos produzissem boa literatura minha avó tinha ganho um Prêmio Nobel  &  imaginei um exército de galinhas carnívoras e pensantes adentrando a cidade, e desimaginei rapidinho  &  tem veneno que você só percebe quando toma a derradeira dose  &




quarta-feira, 22 de abril de 2015

3794) O minuto da marmota (22.4.2015)



(game Red Dead Redemption)

O Dia da Marmota (Groundhog’s Day) é uma festividade folclórica norte-americana, relacionada com a sucessão das estações do ano, mas acabou virando sinônimo de outra coisa. Por causa do filme Feitiço do Tempo de Harold Ramis, essa expressão virou sinônimo de “um mesmíssimo dia eternamente repetido”, como um disco enganchado, ou como uma atividade que é preciso repetir mil vezes até conseguir fazer certo.

No filme, Phil Connors (vivido por Bill Murray) a princípio se espanta, mas quando percebe que está preso num remanso do Tempo, se resigna a reviver aquele dia da melhor maneira possível. Tudo que as outras pessoas fazem é repetido sempre da mesma maneira, como se fosse um balé com coreografias bem marcadas, de modo que ele aprende a evitar pequenos acidentes. Como sabe que às 11:34 uma pessoa vai levar uma queda, ele dá um jeito de estar lá no minuto certo para evitar algo mais grave. Há uma cena impagável em que “todo dia” ele estuda o transporte de dinheiro de um Banco, e de tanto ver a cena se repetir aproveita um breve descuido dos guardas para surrupiar um dos malotes.

Comentando o filme, o diretor disse que provavelmente o personagem de Murray viveu o equivalente a dez anos (ou seja, dez vezes 365), repetindo aquele dia. Ramis disse que teria de ser mais ou menos esse tempo, já que Murray aprende a tocar piano bastante bem.

Esse conceito de uma cena revivida sem parar por uma pessoa é o mesmo que vemos nos videogames. Se num game de ação, guerra, policial, etc. o jogador precisa, digamos, invadir uma instalação militar e explodir uma bomba, ou entrar numa casa e roubar um documento, ou pegar um carro e fugir até a fronteira, cada tentativa sua provavelmente vai terminar com ele sendo abatido pelos inimigos. Quando o jogador morre, volta (como num Dia da Marmota) para o começo da mesma cena, e a repete de novo. Às vezes são necessárias dezenas de tentativas e dezenas de “mortes” para que ele por fim consiga executar suas ações da maneira ideal, sem ser abatido. Todo video-game é um dia da marmota, ou melhor dizendo um minuto da marmota, eternamente repetido, e que finda com a morte, não com o sono.

Borges dizia que, assim como a correnteza dá polimento aos seixos, gerações de pessoas dão polimento a uma história. O tempo as desbasta de tudo que é não essencial a si mesmas. Foi essa a chance que teve Phil Connors: a chance de dar polimento a um único dia de sua vida e reencaminhar alguns dos seus problemas. Digamos que ele precisou trocar um pneu com o carro em movimento, teve direito a mais de três mil tentativas dispondo de todo o tempo do mundo, acabou acertando... e o jorro do Tempo fluiu.




segunda-feira, 20 de abril de 2015

3793) Uns títulos (21.4.2015)



Ouvi falar de um cara cujo romance lhe veio à mente de vez, praticamente pronto, e ele passou a limpo o texto durante alguns dias insones. Como tinha que dar um nome ao arquivo onde estava salvando o texto, e ainda não tinha uma boa idéia, olhou de lado, viu um chiclete sobre a mesa, batizou o arquivo como “Trident”, e salvou. Daí em diante ficou usando esse nome, coisa e tal, e aquilo foi se integrando de tal maneira à obra que na hora depois da revisão final, hora de mandar para a editora, ele chegou à conclusão de que seu drama existencialista sobre a vulnerabilidade do Eu na sociedade pós-moderna iria mesmo se intitular Trident, não porque isto tivesse alguma relação com a narrativa, mas porque ele não conseguia mais pensar no livro com outro título senão aquele.

Damon Knight afirmou certa vez, comentando uns contos de Avram Davidson: “Uma das minhas muitas teorias a respeito de contos é que tanto os seus títulos quanto as suas primeiras linhas devem ser memoráveis, porque se não forem memoráveis eles não serão lembrados, e se não forem lembrados os contos não serão reeditados (porque ninguém vai conseguir encontrá-los).”  Knight considera que um dos títulos mais memoráveis das histórias de Davidson é “Meu Namorado Chama-se Jello” (“My Boy Friend’s Name is Jello”). Ele diz que, mesmo tendo lido a história várias vezes, não consegue mais lembrar o que ela conta. Mas o título grudou.

Davidson é autor de um conto ganhador do Prêmio Hugo sob o título de “Or All the Seas with Oysters” (“Ou Todos os Mares com Ostras”). É uma alusão a Conan Doyle, do conto “O detetive agonizante”, em que Sherlock Holmes, doente, delira diante do Dr. Watson e especula sobre os oceanos e a quantidade de ostras que há dentro deles: “Francamente, não consigo compreender por que todo o leito do oceano não é uma única massa compacta de ostras, tão prolíferas me parecem essas criaturas”.  O título de Davidson, aliás, tem pouco a ver com o conteúdo do conto, mas é dos mais inesquecíveis que existem.

Eu tenho uma inveja inofensiva e sincera dos caras que deram a suas histórias ou seus livros títulos como “Sagarana”, “O Homem que Era Quinta-feira”, “Mas Não se Mata Cavalo?”, “O Ganido dos Cães Chicoteados”, “O Carteiro Sempre Toca Duas Vezes”, “Estrelas em Meu Bolso Como Grãos de Areia”, “Cinquenta Anos Falando Sozinho”, “Um Faca Só Lâmina”, “O Acrobata Pede Desculpas e Cai”, “Porque Eu Toquei no Céu”, “O Amor nos Tempos do Cólera”, “Neuromancer”, “Todos os Fogos o Fogo”, “PanAmérica”, “Será que Andróides Sonham com Carneiros Elétricos?”, “Claro Enigma”, “O Desastronauta”, “Os Frutos Dourados do Sol”, “Dormindo nas Chamas”.







sábado, 18 de abril de 2015

3792) Os Super-Heróis (19.4.2015)




Um super-herói, como os dos quadrinhos e do cinema, é como um ser humano comum refletindo-se nos espelhos deformados dos parques de diversões. O herói pertence a um mundo elástico onde certos detalhes podem ser hipertrofiados enquanto o restante tenta permanecer o mais normal possível. 

Todos os Super-Heróis têm uma ferida dolorosa em sua origem: um ficou cego, outro foi picado por uma aranha, outro perdeu os pais, outro perdeu os pais e o planeta. 

Os Vilões também não são vilões de nascença, cada um deles traz também uma ferida como momento de origem: um disparo, um acidente, um banho de ácido, a perda de uma pessoa amada, a perda de uma parte do corpo, uma traição sofrida... tudo isto também é o estofo de que os Vilões são feitos.

Os X-Men são mutantes sobre os quais caiu como um raio um superpoder aleatório, sem muita explicação. Por serem diferentes são cercados, por terem um poder são capazes de revidar. 

Alguns mutantes desenvolvem o superpoder mas não a capacidade de administrá-lo, o que os leva a praticar violências, crimes, ou então servirem como atrações ou fenômenos circenses.  Indivíduos realmente capazes de ler pensamentos passam a vida inteira enfrentando platéias broncas, acertando a leitura, e sendo vaiados como truque. 

Outros são mais espertos: Os Filhos do Átomo (1953) de Wilmar H. Shiras (há uma tradução brasileira, de 1969) mostra crianças dotadas de superinteligência que conseguem disfarçar essa condição e passar despercebidas, como crianças comuns.

Às vezes, a ferida do herói, o espinho encravado do seu desajuste, é apenas o reverso-da-moeda do dom espantoso que ele recebeu. Bênção e maldição descem juntas sobre a vida dele. O superdotado Grenouille, de O Perfume (1985) de Patrick Susskind é ao mesmo tempo um indivíduo sem cheiro, sem odor de espécie alguma, e o indivíduo de olfato mais apurado no mundo. É o homem que “vê” tudo menos a si mesmo. 

Grenouille é quase um sociopata, mas torna-se quase um cientista, guiado pelo superolfato que o mantém sob encantamento constante. Sua monstruosidade torna-se grandeza, sem deixar de ser monstruosa.

Hércules só realizou os seus famosos Doze Trabalhos porque eles lhe foram impostos como pena por ter assassinado a mulher e os seis filhos. William Burroughs (Almoço Nu) afirmou que até matar a própria esposa num acidente irresponsável ele era apenas um drogado igual a qualquer outro, mas aquela morte o tornou escritor. Despertou, pela dor da ferida, seus superpoderes, e lhe mostrou um caminho diferente. 

O Super-Herói não é apenas um poderoso, é alguém que desenvolve um poder extremo para compensar uma fraqueza extrema.






sexta-feira, 17 de abril de 2015

3791) "Ladrão de Sonhos" (18.4.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje será exibido Ladrão de Sonhos (“La cité des enfants perdus”, 1995), dirigido por Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro. O filme conta a história de um cientista que para não envelhecer precisa roubar os sonhos das crianças que sequestra. Ele pluga seu cérebro no cérebro dos meninos (Matrix usou recursos visuais análogos) mas se aterroriza com seus pesadelos. Seu esconderijo, num cais do porto brumoso e decadente, é habitado por uma anã, um grupo de clones (todos interpretados por Dominique Pinon, ator-mascote dos diretores), e variadas criaturas com elementos de cyborg ou de vilão de seriado.

Jeunet e Caro estrearam com Delicatessen (1991), que tem a mesma atmosfera surreal, semifuturista (mas um futuro sem muita lógica), personagens grotescos, cenários delirantes, um clima “steampunk”. Cada imagem nos projeta num ambiente de tecnologia do século 19, com elementos de um futuro pouco plausível. Os personagens são caricaturas; comportam-se como personagens de desenho animado, sem muita preocupação com realismo emocional.

Jeunet separou-se depois de Marc Caro (que é mais cenógrafo do que diretor) e realizou filmes como Alien: Ressurrection (1997), O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), Eterno Amor (2004) e outros. Embora seus filmes tenham uma incessante criatividade visual e narrativa, ele nunca mais produziu delírios tão consistentemente fantásticos quanto esses dois primeiros filmes, mistura de surrealismo, ficção científica, quadrinhos, velhos seriados.

Os filmes de Jeunet & Caro são exemplos do que chamo de Ciência Gótica: histórias repletas de elementos científicos (máquinas, laboratórios, instrumentos, experimentos químicos e físicos), mas desprovidas voluntariamente da lógica científica. É uma ciência cenográfica, acima de tudo, porque o mundo onde esses adereços se amontoam é um mundo Gótico: sombrio, ominoso, inexplicável, resistente à lógica e aos sentimentos, um mundo onde os seres humanos parecem máquinas de outro tipo, executando ações insensatas e brutais.

Ladrão de Sonhos, cujo título original é “A cidade dos meninos perdidos” é um filme desconcertante, a menos que o espectador consiga vê-lo com os olhos com que, menino, observava coisas terríveis, ameaçadoras, fascinantes, repulsivas, coisas que pertenciam ao mundo dos adultos, o mundo bizarro que um dia seria o seu.



quinta-feira, 16 de abril de 2015

3790) Eduardo Galeano (17.4.2015)



A morte de um grande escritor, como a de qualquer pessoa muito conhecida, enche a imprensa de maledicências e benedicências. Sempre tem alguém que aproveita o silêncio definitivo do outro para chamá-lo de imbecil ou de santo. Eduardo Galeano foi um grande escritor que, por ser de esquerda, jamais será lido pela metade da humanidade cuja religião política lhe assevera que o esquerdismo é tão contagioso quando o homossexualismo ou o alcoolismo: basta chegar perto daquilo e o “caba” já está contaminado pro resto da vida.

Alguns obituários destacam o fato de que Galeano teria “renegado” seu livro mais famoso, As Veias Abertas da América Latina (1971), talvez a maior denúncia da exploração do nosso continente pelos variados colonialismos. Galeano publicou esse livro extraordinário aos 31 anos, embebido daquele entusiasmo salvacionista que nos ajuda a enfrentar as desilusões da juventude. Queixou-se, depois de velho, da prosa tediosa, dos seus poucos conhecimentos de economia política na época. Seu livro cede com frequência ao “melodrama da vitimização”, recurso retórico que a esquerda usa há um milhão de anos. Mas não importa. É o calidoscópio dos milhares de fatos surreais e cruéis que torna o livro um monumento de quase-ficção, como Os Sertões ou Casa Grande & Senzala.

Talvez pela consciência dos seus excessos de entusiasmo, Galeano nunca parou de evoluir. Textos como Vagamundo (1973) e A Canção de Nossa Gente (1975), que li na mesma época, são literariamente brilhantes, muito superiores às Veias Abertas, enquanto que o massacre político, econômico e cultural do continente foi retomado, com mais maturidade, na enorme pesquisa histórica que resultou na trilogia Memória do Fogo (Os nascimentos, 1982; Os rostos e as máscaras, 1984; O século do vento, 1986). 

Borges disse que um escritor é sempre julgado pelo seu credo político, e por isto todo mundo via em Kipling o romancista do imperialismo britânico, e não um dos maiores escritores de seu tempo. Galeano produziu uma obra vasta que acabei perdendo de vista; o último que li foi As Palavras Andantes, ilustrado pelas xilogravuras do nosso J. Borges. Seus escritos sobre futebol têm uma paixão e uma lucidez que sempre invejei; logo o futebol, cuja força gravitacional, tal como a da política, parece empurrar todo mundo na direção da fúria alucinada. A paixão em Galeano (paixão amorosa, paixão política, paixão literária, paixão futebolística) foi, para usar a velha metáfora, um corcel ágil e impetuoso, sempre mantido sob controle por um cavaleiro que sabia para onde estava indo: para o horizonte da utopia.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

3789) Crítico ou resenhador (16.4.2015)



(o crítico John Clute)

Antonio Cândido já elogiou com admiração o resenhador de livros, o crítico do varejo semanal, que escreve sobre o que vem parar em cima da sua mesa na redação. Dizia ele: “Não é fácil escrever todas as semanas sobre livros do dia, feitos muitas vezes por autores desconhecidos, a respeito dos quais não se tem a menor referência. Por isso digo que um crítico como Álvaro Lins, que acertava sempre e produzia artigos bem escritos, de grande densidade e destemor, enfrentava dificuldades maiores do que, por exemplo, Augusto Meyer, que escrevia não sobre o livro da semana, de autor frequentemente desconhecido, mas sobre Camões, Cervantes, Machado de Assis, Dostoiévski, Pirandello, Rimbaud.” 

Deve ser mais cômodo trabalhar com os clássicos, ou com textos em domínio público, do que com autores de carne e osso, cheios de opiniões, mas a questão nem é essa. A crítica e a teoria se desvalorizam quando passam longe da literatura. A crônica jornalística impõe a quem a escreve o contato com o inesperado. Escrever sobre um dado que gira e que não se definiu ainda, e que às vezes cabe a nós traçar o seu primeiro perfil.

O crítico John Clute diz: “Acho que a tentativa de captar e definir o que existe de ‘historiável’ em um texto novo, que é o que se espera dos resenhadores, é absolutamente inerente a qualquer compreensão de um texto qualquer. E acho que a crítica acadêmica, que tende a abstrair, em proporções industriais, temas a partir dos textos (numa espécie de mineração), tende a tropeçar logo na primeira barreira: a tarefa de descrever como um conto se livra contando do seu fardo. Porque se você não conseguir transmitir essa parte essencial, esse ‘como’, você só pode discutir em cima de uma generalização fatalmente vazia, desgarrada.” 

Alguns ficcionistas produzem textos críticos muito lúcidos e demonstram conhecer o gênero com que trabalham. Stephen King, Lovecraft, Henry James etc têm inclusive talento para a descrição sintética, resumindo em poucas linhas o sentido ou o impacto de um livro. Autores comentando livros alheios costumam ter uma abordagem mais pragmática, indo direto ao ponto, falando não como autores, mas como leitores.

Dizem que Pauline Kael, a grande crítica de cinema novaiorquina, escrevia aqueles seus comentários agudos e personalistas tendo visto o filme apenas uma vez. Via hoje, escrevia amanhã; os artigos estão preservados nos seus livros. O crítico vive, como diz Clute, como o canário na mina de carvão das coisas novas.  Para acusar de imediato qualquer mudança nas condições normais de temperatura e pressão, ou qualquer outro indicador que faça o ponteiro do novo pular.




terça-feira, 14 de abril de 2015

3788) 10 terapias (15.4.2015)



(ilustração: Igor Morski)


Matilde Varandello, 34 anos, estilista, de Londrina: recorta e prega em álbuns tamanho grande as matérias e as fotos que mais gosta a respeito de suas cantoras preferidas, cuja última listagem alinhou 73 nomes.

Argeu Valadares, 43 anos, comerciante, baiano: pega a vara e vai pescar.  Com isca ou sem isca, não se abala e vai pescar. Tenha ou não tenha peixe, tenha ou não tenha mar, daqui a um milhão de anos a Humanidade já se extinguiu mas Argeu Valadares vai pescar. (E a Humanidade que se extinga.)

Jamima Durães, 32 anos, psicóloga, São Paulo, dialoga com os bancos de metrô. Reproduziu as plantas baixas dos trens, deu um nome a cada vagão e a cada banco, e, quando senta em qualquer um deles profere uma prece ligada àquele banco específico.

Mário Alenquer Fortunato, 58 anos, contabilista, Rio. Sabe de cor um disco inteiro de uma cantora americana, arranjos, letras, tudo, e qualquer problema que desabe sobre ele o obriga a cantar o disco faixa por faixa, a plenos pulmões quando em casa, em voz bem baixinha quando nos cubículos do escritório.

Hermán Montero, 56 anos, jornalista aposentado venezuelano. Recorta palavras aleatórias das manchetes dos jornais e monta com elas poemas surrealistas em forma de notícias bizarras.

Paulo César Costa Carvalho, 43 anos, representante de vendas, Junco do Seridó. Onde quer que haja um intervalo, puxa do bolso do paletó uma revistinha com problemas de Sudoku, que ele resolve e depois não consegue lembrar como resolveu, de tão distraído que fica.

Vanilda Borges Lima, 44 anos, professora, capixaba, costuma ter uns apertos no peito contra os quais reage preparando um chá de camomila de três saquinhos para meia chaleira dágua, depois polvilhar com canela e uma gotinha de mel, é tomar três e capotar até a chegada da diarista.

Nelson Barbosa Olivetto, 61 anos, fotógrafo aposentado, todas as vezes que está numa fila muito longa dedica-se a lembrar a letra de “Construção” de Chico Buarque, e depois a repete mentalmente de trás para diante.

Léia Donato Filgueiras de Sousa, 27 anos, está construindo um palácio da memória, embora não lhe dê este nome; e lembra com nitidez cada coisa que botou em cada recanto ou parede de cada aposento da casa que ela imaginou para si.

D. Salvina, 81 anos, dona de casa, Santa Luzia. Às vezes quando passa a noite inteira sem sono levanta sem acordar o velho, vai para a cozinha, traz uma cadeira pra junto da pia, abre a torneira só um pouquinho para poder ouvir cada uma das gotas que tombam tinindo no fundo oblíquo de uma panela emborcada, e é assim que o velho a encontra com o sol já alto, ela por fim dormindo em paz.




segunda-feira, 13 de abril de 2015

3787) Best-sellers (14.4.2015)



Poucos termos do mercado editorial são usados de maneira tão frouxa quanto este. “Best seller” significa, ao pé da letra, “o que vende melhor”. É uma indicação puramente numérica, quantitativa, que diz respeito a quantos exemplares um livro vendeu durante um certo período. “Best seller” não é sinônimo de livro de auto ajuda, nem de thriller de ação, nem de história apimentada sobre a vida sexual de gente rica, nem de romance de fantasia heróica.  Qualquer um desses pode eventualmente aparecer nas listas de best-sellers, mas ser de algum desses gêneros não é garantia de que o livro vai vender. (Muita gente acha que quem vende é o gênero, aí produz um livro meia-bomba, num gênero que conhece mal, achando que o gênero vai vender o livro sozinho. Se vendesse todo mundo era rico.)

Nenhuma editora e nenhum autor sabem o que faz um livro vender muitos exemplares; se soubessem, usariam essa fórmula o tempo inteiro, com o mesmo efeito que tem a macumba do campeonato baiano. Todos acham que sabem, aplicam a fórmula, geralmente dão com os burros nágua, e na semana que vem tentam de novo. O mercado editorial cria seus sucessos na base da tentativa-e-erro, e é bom que seja assim. No dia em que conseguiram produzir uma fórmula pra valer, acabou-se a literatura.

Acho fantasia pura essas listas de best-sellers que aparecem nas revistas e nos jornais. Nem preciso aventar hipóteses de jabá e payola, para dizer que aquele título está vendendo muito, e mediante isto fazer as vendas decolarem. (Na música, tem todos aqueles prêmios que são entregues a quem vende mais numa série de faixas de mercado. Com o passar do tempo, os brindes deixam de ser um prêmio pelo bom desempenho e tornam-se uma maneira de chamar a atenção sobre o artista e puxar as vendas até alcançar o número necessário.)

E fiquei por aqui, remexendo na memória e pensando em best-sellers antigos. Posso estar enganado num ou noutro título, mas, pelo que me lembro, todos estes livros apareceram durante algumas semanas seguidas nos primeiros lugares das listas brasileiras de best-sellers. Pode-se não gostar deste ou daquele, mas ninguém dirá que são livros “picaretas”, voltados ao consumo fácil. Entre os best-sellers que recordo terem vendido muito no Brasil, estão A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera, Dicionário Khazar de Milorad Pavic, A Vida Modo de Usar de Georges Perec, O Nome da Rosa de Umberto Eco, A Grande Arte de Rubem Fonseca, Galvez, Imperador do Acre de Márcio Souza, Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, Poesia de Paulo Leminski...  Todos são best-sellers; todos, em algum momento, venderam muito, para muitos leitores.




domingo, 12 de abril de 2015

3786) O fim do livro (12.4.2015)



Toda essa luta para evitar o fim do livro não vai adiantar muita coisa se as livrarias florescerem e se multiplicarem vendendo apenas o tipo de livro que a gente encontra nas livrarias de aeroporto.  Os best-sellers inevitáveis do ano, as biografias de celebridades, os livros de conselhos para vendedores, livros para administradores de empresa, livros religiosos, livros de cozinha, de viagens... Não é impossível imaginar uma Distopia onde o livro vá de vento em popa e a literatura esteja extinta. Na verdade, há motivos para supor que é isto o que está em processo de criação, nas estratégias empresariais, em mais países do que me atrevo a imaginar.

Criou-se uma falsa oposição entre, digamos, O Cão dos Baskervilles de papel e O Cão dos Baskervilles eletrônico, quando na verdade deveríamos ser gratos por termos pelo menos duas formas totalmente diferentes de registro para preservar o texto de O Cão dos Baskervilles, que ao fim e ao cabo é o que realmente importa. Os suportes tecnológicos acabam sempre sendo superados por algo mais novo. O texto literário é alegria pra sempre.

A luta pelo livro é importante por tudo quanto o livro de papel representa de prático (portabilidade, autonomia, etc.) e simbólico, em nossa cultura. De nada vai nos adiantar, contudo, focar a luta apenas no livro, como se o fato de as pessoas passarem a comprar mais livros de papel fosse resolver o problema. Comprar que livros, cara pálida? Como Parecer Menos Rico e Viver em Paz? Os Onze Conselhos do Vendedor Bem SucedidoAs Memórias de Kim Kardashian?  Ou obras de literatura? A literatura é mais importante do que o livro. E basta ver como ela tem pouco espaço em nossos cadernos culturais, geralmente voltados para a psicanálise, a história, as ciências sociais, etc.  A literatura (o romance, o conto, a poesia) acaba sendo, ironicamente, a prima pobre das publicações literárias.

Em momentos de especulações mais “dark”, nada nos impede inclusive de imaginar que aquela Distopia antiliterária citada acima seja o produto, construído a longo prazo mas de efeito relativamente rápido, de um lento processo de empobrecimento compulsório da imaginação e da linguagem, de tal sorte que os últimos escritores descerão para a tumba e livros novos continuarão a aparecer, não se sabe como. A essa altura alguém terá produzido o texto que escreve a si mesmo, o programa que se autoinventa à medida que avança. Os livros serão escritos por uma Antártida de logaritmos, capazes de reproduzir, imitar ou recombinar qualquer estilo a que sua franquia tenha acesso no contrato. Os livros se autoescreverão, e o homem será somente leitor.



sexta-feira, 10 de abril de 2015

3785) "A Hora do Lobo" (11.4.2015)



Estou coordenando, para o cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Amanhã, após a sessão, haverá debate comigo e com o prof. Sérgio Almeida.)

A Hora do Lobo (“Vargtimmen”, 1968) deve ter sido o primeiro filme de Bergman que eu assisti. Me marcou mais do que seus numerosos filmes sobre crises amorosas (Cenas de um Casamento, A Hora do Amor, A Paixão de Ana, etc.)  O diretor sueco pode ser considerado um diretor de filmes conjugais, mas para mim é um diretor de filmes fantásticos, ou de clima fantástico, mesmo quando não acontece nada literalmente impossível. O Rosto (“Ansiktet”, 1958) mostra um grupo de artistas ambulantes que realizam números mediúnicos e de magia. O Sétimo Selo (1957) é o famoso filme do cavaleiro medieval que joga xadrez com a Morte. Morangos Silvestres (1957) não é propriamente fantástico mas sua maneira de justapor um personagem no presente vendo uma cena do seu passado criou um estilo único de quebra temporal.

O fantástico em A Hora do Lobo tem algo de gótico, de fatalista. Neste filme, um artista (Max von Sydow) atormentado por visões ameaçadoras resolve se afastar do mundo e vai viver com a mulher (Liv Ullmann) numa ilha pouco habitada, imaginando com isto se livrar dos fantasmas que o perseguem. A convivência com as outras pessoas da ilha acaba fazendo recrudescer suas alucinações, que a esposa, solidariamente, começa a compartilhar. A aridez da ilha deserta, na fotografia em preto-e-branco de Sven Nykvist, ganha a aparência daqueles pesadelos superficialmente realistas, onde apenas os fatos são bizarros, mas as imagens são de uma nitidez dolorosa.

Neste filme há uma cena memorável pela maneira como faz sentir a passagem do tempo. Max von Sydow, durante uma madrugada de insônia, pega o relógio e começa a marcar a passagem de um minuto.  Nunca cronometrei, mas acredito que se passe de fato um minuto, tornado concreto, sensível. E li que Bergman teria feito uma referência a uma cena de Bande à Part de Godard (1964), em que os personagens se propõem a fazer um minuto de silêncio, mas interrompem-se antes disso. Os Beatles contaram um minuto inteiro, com um desenho por segundo (e indo até o “sixty-four”) no Submarino Amarelo de George Dunning (1968).  Há muitas maneiras de fazer caber em um minuto histórias inteiras, pequenas epifanias, tragédias de bolso.  Quem sabe o personagem de Bergman sente um certo alívio quando se passa um minuto e nada acontece.




quinta-feira, 9 de abril de 2015

3784) Dupla identidade (10.4.2015)



Oscar Wilde, o rei do paradoxo, dizia: “Se quiser conhecer a verdadeira personalidade de alguém, dê-lhe uma máscara”. Faz sentido. Quando estamos mostrando nossa própria cara, estamos mostrando uma imagem presa a convenções e regras sociais, familiares, morais, etc.  

Cada um de nós é um personagem na convivência social com família, amigos, colegas de trabalho. Sabemos que qualquer passo em falso vai manchar a reputação dessa pessoa que somos, desse papel que é o único que temos. Nosso rosto e nossa imagem pública são esculpidas pelo Superego, pelas exigências que nos massacram de cima para baixo e de fora para dentro.

Quando botamos a máscara, a coisa muda de figura. No carnaval, machões se vestem de mulher, homens pacatos empunham armas de brinquedo e promovem massacres fictícios, mulheres recatadas viram odaliscas se oferecendo (de mentirinha) a qualquer um. 

Botam pra fora o que de fato são (ou uma parte importante e reprimida do que são) e vivem o alívio de uma fantasia permissiva e consolatória.

Freud comentou que a literatura popular, com seus heróis indestrutíveis e sempre triunfantes, é “a literatura do Ego”, destinada a celebrar e gratificar essa imagem idealizada de nós mesmos. Quando colocamos uma máscara, essa máscara vira “o Eu que gostaríamos de ser”; quando criamos um herói, acontece o mesmo. 

Histórias de heróis com dupla identidade são um clichê da literatura popular: Superman, Batman, o Zorro, o Sombra, o Homem Aranha e incontáveis outros têm uma identidade pública, pacata, civil, e uma identidade secreta e famosa, o herói que a cidade inteira teme e reverencia sem saber que se trata daquele mesmo indivíduo banal que todos cumprimentam sem saber que dentro dele se esconde o herói.

A saga do Super-Homem pode muito bem ser vista como um delírio de Clark Kent: um repórter desajeitado, grandalhão, de óculos, tímido, incapaz de arranjar uma namorada. 

Por um processo de compensação, Kent começou, a certa altura da vida, a desenvolver uma fantasia de que era na verdade um extraterrestre dotado de superpoderes. Todas aquelas aventuras são imaginárias, são um processo de autoindenização psicológica onde ele cura as feridas produzidas pelo trabalho e sabe-se lá pelo que mais. 

Na sua rotina de redação, Clark Kent embarca waltermittyanamente em devaneios e delírios onde salva vezes sem conta a cidade de Metrópolis e o planeta Terra. O Super-Homem é a máscara que ele usa para “ser ele mesmo”, ser o que ele de fato gostaria de ser. A máscara é o que o Eu gostaria de ver no espelho, mas precisa de uma máscara para isso.  Ninguém contou ainda a verdadeira história de Clark Kent.