domingo, 29 de março de 2015

3774) Contos curtíssimos (29.3.2015)



(Hemingway bebê)

Sempre que falo aqui em contos curtíssimos, contos-relâmpago num mínimo de texto, cito o exemplo de Hemingway.  Numa mesa do famoso restaurante Algonquin, em Nova York, escritores debatiam para ver quem escrevia o conto mais curto, e Hemingway rabiscou num guardanapo de papel as famosas seis palavras: “For sale. Baby shoes. Never worn” (“Vende-se. Sapatos de bebê. Sem uso.”)

Textos tão compactos criam uma rede interna de relações, como um ideograma. Por que alguém venderia um par de sapatos de bebê?  E por que nunca foram usados? A explicação mais imediata é de que alguém começou a preparar um enxoval de bebê e depois desistiu, porque o bebê foi perdido. Há um pequeno drama humano nessas palavras.  E mais ainda quando, para além do realismo da situação, atentamos para a sutileza de que o “autor” do texto, certamente, são os pais da criança, e que o último detalhe (“sem uso”) é o mais doloroso, mas valoriza o produto à venda. 

A emoção está presente através da secura da linguagem. Basta sugeri-la, sem exprimi-la diretamente.

O saite Open Culture (aqui: http://tinyurl.com/kkoa6kz) afirma que o texto não é de Hemingway. Já existia em 1906, numa coluna de jornal chamada “Terse Tales of the Town”, um texto dizendo: “For sale, baby carriage, never been used. Apply at this office”.  Depois dessa data há várias versões, algumas se referindo a sapatos de bebê, outras a um carrinho. Há inclusive uma tirinha de quadrinhos de 1927 indicando-a como “o maior conto curto do mundo”.  (Não transcrevo todos os exemplos aqui, por falta de espaço.)  Tudo indica que Hemingway, se é que a aposta no Algonquin é verdadeira, se baseou mais na memória do que na imaginação, e de alguma forma conhecia esses exemplos mais antigos.
Isso mostra o quanto, na cultura digital, é fácil pegar um mentiroso. Já escrevi em algum lugar que não há originalidade que resista a um bom levantamento bibliográfico. A busca eletrônica pode descobrir em horas algo que levaria anos para fazer em bibliotecas, compulsando coleções encadernadas de jornais empoeirados e obscuros. 

O miniconto de Hemingway não perde com isso sua força literária. Ela fica até maior se considerarmos agora, podendo fazer a comparação entre as sucessivas versões, que o texto foi sendo limado, reduzido, aperfeiçoado até chegar à sua irretocável versão atual de seis palavras. O que perde é a “lenda urbana” criada em função do autor famoso. 

E por vias transversas acabamos batendo noutra característica da cultura digital: a mania de atribuir uma boa frase a uma pessoa famosa, na crença de que isso ajudará a propagá-la. Crença perfeitamente justificada, aliás.




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