sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

3682) O plágio provençal (12.12.2014)




Diz Ezra Pound, no ABC da literatura, que “há uma tradição segundo a qual em Provença era considerado plágio tomar a forma de um outro, tal como agora se considera plágio tomar-lhe o seu assunto ou o seu projeto.”  Como tantas coisas antigas, isto nos parece um contrassenso.  Formas poéticas são parte do banco de dados da nossa cultura, são de todo mundo. A quadra, o hai-kai, o soneto, a sextilha... É do conteúdo dos poemas que esperamos originalidade.  As formas fixas existem como recipientes. Copos de diferentes formatos; a expectativa é quanto à bebida que vai ser saboreada.

Pelo que diz Pound sobre essa época de ouro da poesia (houve muitas épocas assim, pelo mundo afora), os provençais eram engenheiros do verso, eram construtores de formas, desenhistas de estruturas.  Criavam novas formas de estrofe, novas organizações das rimas, novas cadências da métrica.  Raramente se pode dizer com certeza científica que o poeta-tal inventou a forma-tal, mas os grandes praticantes acabam recebendo alguns direitos de paternidade.  O soneto italiano (com dois quartetos e dois tercetos) será sempre associado a Petrarca; o hai-kai japonês, a Bashô. 

Para os poetas da Provença, uma estrutura de metros e rimas a ser fielmente obedecida era o maior desafio que podiam conceber.  Graças a Augusto de Campos, principalmente, temos conhecimento de poemas como “L’Aura Amara” de Arnaut Daniel, uma canção de amor que tem como ponto de partida o trocadilho entre o nome da amada, Laura, e a expressão “l’aura”, a aurora. 

É interessante comparar esses conceitos de propriedade com o da cantoria de viola nordestina, porque José Alves Sobrinho, em seu Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, diz: “Silvino Pirauá Lima criou a sextilha e introduziu o martelo agalopado na cantoria. Nicandro Nunes da Costa criou o mote de um pé só; Manoel Raimundo de Barros criou a regra de um mote de 3 versos; Romano do Teixeira criou o mourão de 5 pés; Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador criou a estrofe de 7 pés e o mourão de 7 pés; José Pretinho do Crato, criou o galope a beira mar; Antonio Ugolino Nunes da Costa criou a oitava antiga; Vicente Granjeiro Landim introduziu a oitava em quadrão; (...)”  E por aí vai Zé Sobrinho, numa enumeração que quase não acaba mais. 

Esses poetas sertanejos brincavam com as formas de estrofe, os metros, as rimas.  Não chegavam à sofisticação estrutural de Arnaut Daniel, e não guardavam para si direitos autorais sobre as formas, as quais ainda hoje são livremente propagadas. O desafio é somente o de usar a nova forma tão bem, ou melhor, que o seu criador.