domingo, 19 de outubro de 2014

3635) "Papis et Circenses" (19.10.2014)



Num dos quatro prefácios que fez para Tutaméia, Guimarães Rosa anunciava: “A estória não quer ser história.  A estória, em rigor, deve ser contra a História.  A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota”.  Poderia servir de epígrafe ou comentário para numerosas obras contemporâneas em que fatos históricos aparentemente consensuais e estabelecidos são retomados com o discurso típico da ficção e começam a mostrar-se tão maleáveis e sujeitos a novas luzes que quando retornamos ao compêndio histórico sua verossimilhança parece comprometida até o fim dos tempos.



É o que acontece com as narrativas curtíssimas de José Roberto Torero em Papis et Circenses (Alfaguara, 2014), que descreve em poucos parágrafos as trajetórias de cerca de 98 pontífices (alguns textos englobam mais de um).  Torero tem beliscado a História do Brasil por diversos ângulos comprometedores (O Chalaça, Terra Papagalli, etc.), como que para nos lembrar que ela permanece nua por baixo das vestes fornecidas pelos historiadores oficiais.  Este seu resumo da história dos Papas parece surreal, mas ao mesmo tempo tem os pés na História, até mesmo quando fala de personagens como João VII, que sofreu um aborto durante uma procissão.  (Pois é... era uma mulher.) 



Vários episódios do livro parecem esquetes do Monty Python, mas fui conferir na web, e tudo bate.  Os fatos são basicamente aqueles, as motivações pessoais aqui descritas não devem estar muito distantes das que a História registrou.  Tudo depende da voz narrativa.  A de Torero, embora rápida, cortante, irreverente, não chega a ser a voz do deboche, nem mesmo quando resume num hai-kai o destino de Urbano VI: “Urbano ia na procissão / mas caiu de sua mula, / e bateu a cabeça no chão”.  Papas mais recentes, de Pio XII até aqui (os que coincidiram com meus anos de vida) são retratados com finura e sem mercê.  


É um livro de contos? Microcontos em alguns casos; outros poderiam ser chamados de cartuns verbais.  Recorrendo a teatro, diálogo, narração de desfile de escola de samba, cobertura de TV ao vivo e outros tipos de discurso, o autor arranca a pompa e circunstância da crônica histórica como se arrancasse a vestes hollywoodianas de um pontífice (e de imperadores, nobres, poderosos em geral) e os expusesse nus e crus, dizendo da boca pra fora suas verdadeiras intenções.  É um livro que vai para a mesma prateleira de Vidas Imaginárias de Marcel Schwob, História do Brasil de Sebastião Nunes, The Atrocity Exhibition de J. G. Ballard, História Universal da Infâmia de Borges e o DVD de O Estranho Caminho de São Tiago de Buñuel.  Marromenos.



3634) Palavras inventadas (18.10.2014)




Falei dias atrás na mania que tem esse povo de, toda vez que eu invento uma palavra, vir se queixar a mim que a palavra não existe. Certamente vivem num universo em que, quando Adão e Eva surgiram, já havia um exemplar do Dicionário Aurélio, ou do Houaiss, informando as palavras que poderiam usar.  

Repito mais uma vez: um dicionário não é um Código Civil dizendo o que pode e o que não pode fazer, é mais parecido com um Guia Telefônico, que faz uma longa lista, altamente provisória, de (quase) tudo que existe no momento, para quem precisar.

As palavras novas podem surgir do zero, invenção total, mas às vezes são derivações que termos que já existiam.  Sempre tem alguém que usa uma palavra pela primeira vez e ela pega. Quando é o povo que faz isso, é impossível saber de onde veio, porque só nos damos conta quando a palavra já tem milhões de usuários.  

Temos mais sorte quando são escritores, cientistas, jornalistas, políticos: muitas vezes o uso deles fica registrado, pode ser rastreado até o texto original.

A palavra “feminista”, por exemplo, é atribuída a Alexandre Dumas Filho, em 1873; seu tradutor para o inglês G. Vandenhoff a traduziu por “feminist” e fez uma ressalva: “perdão pelo neologismo”.  

“Factóide” é um termo hoje em voga na política, para designar fatos inexistentes ou irrelevantes que ganham importância através das telecomunicações. A criação é de Norman Mailer, em 1973, em seu livro sobre Marilyn Monroe.  Hoje, todo mundo usa.  Mas houve um dia em que leitores cautelosos fecharam o livro e pensaram: “Acabo de testemunhar uma contravenção. Alguém usou uma palavra que não existe”.

Um artigo no The Guardian (aqui: http://bit.ly/1lwrt9y) examina essas e outras origens de palavras hoje de uso comum no inglês, e algumas também no português.  Tem palavra mais comum do que “internacional”?  O primeiro uso registrado é de 1789 através de Jeremy Bentham, em An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, onde ele propõe o termo “international jurisprudence” para substituir “law of nations”, que considerava equivocado.

"Meme”, palavra hoje tão comum na cultura web, foi criado em 1976 por Richard Dawkin, com um sentido ligeiramente diferente do que tem hoje. Para ele, um meme “representa idéias, comportamentos ou estilos que se espalham de pessoa para pessoa. Pode ser uma dança da moda, um vídeo viral, uma nova moda, um recurso tecnológico ou uma frase de efeito. Assim como os vírus, os memes surgem, se espalham, sofrem mutações e morrem.”  

Hoje, meme (e sua distorção proposital via zoeira, “mene”) é “foto bizarra com legenda humorística superposta”.







3633) "A dançarina e o coronel" (17.10.2014)



A Guerra de Princesa é um dos grandes episódios épicos da história da Paraíba.  Em 1930 o município de Princesa Isabel desafiou o governo do Estado, chefiado por João Pessoa, o qual tentava (muito compreensivelmente, do ponto de vista administrativo) evitar que o algodão paraibano fosse remetido direto para o porto do Recife, sem pagar impostos na Paraíba. A velha animosidade entre os coronéis sertanejos e os burocratas do governo precisou apenas dessa fagulha para pegar fogo.



Princesa pegou em armas, declarando-se “Território Independente”, com hino, bandeira, o escambau. e foi atacada pelas tropas do governo. Em julho daquele ano, o assassinato de João Pessoa pelo líder sertanejo João Dantas, por motivos mais pessoais do que políticos, espalhou a guerra pelo resto do Brasil.  O conflito ganhou outra proporção, os sertanejos entregaram as armas e Getúlio Vargas virou ditador.



Não conheço muitos romances sobre a Guerra de Princesa. Dois deles, contudo, são de Aldo Lopes de Araújo: O dia dos cachorros (Recife: Bagaço, 2005), uma reconstituição fantasiosa e desbocada da campanha, e agora A dançarina e o coronel (Bagaço, 2014) que é focado no mesmo tempo e espaço, mas com uma narrativa muito diferente.  Desta vez, o centro do romance é a chegada de um circo à cidade (que no livro recebe o nome de “Perdição”) e uma porção de fatos inusitados que acontecem.  A guerra é lá fora, vemos os jovens que partem armados, alguns que voltam mortos na carroceria de um caminhão, mas o foco da história é nos personagens presos no interior da cidade cercada. 



Num clima meio O Circo do Dr. Lao de Charles G. Finney (o romance fantástico arquetípico do tema “Circo Chegou na Cidade”), vemos a história do rapaz que faz uma corda apontar para o ar, sobe por ela e desaparece; o avião rebocado por carro de boi; o bebê que passa 40 anos no ventre da mãe; um desfilar de criaturas e situações que ora lembram Garcia Márquez, ora as histórias que minha avó contava a minha mãe muito antes de Garcia Márquez saber o beabá.


O Dia dos Cachorros era um “roman à clef” onde era possível identificar os vultos históricos por trás dos nomes dados pelo autor. A dançarina e o coronel, se usa esse artifício, é em função de pessoas locais que um leitor de fora não tem como reconhecer, nem precisa.  A história se arma como fabulação, cuja verossimilhança é robustecida não pelos paralelos com a História, mas pela sua simetria com os mitos, as lendas, as histórias que todos nós ouvimos na Paraíba e eram todas tão óbvias que antes de Aldo Lopes ninguém achou que valia a pena transformá-las em literatura.