quinta-feira, 9 de outubro de 2014

3626) Muitos anos depois (9.10.2014)




Na sala de visitas do dr. Amarante só faltava a lareira, mas havia uisque e charutos. “Aqui em São Luís da Serra uma lareira não destoaria,” disse o visitante, o advogado Hugo Restelo. “Meus pais se mudaram para esta casa já na época dos aquecedores elétricos,” disse o dr. Amarante, puxando as cortinas que mostravam por imensas vidraças o vale começando a anoitecer. “Mas tínhamos lareira na casa anterior, onde nasci, e que já não existe mais.”  “Não sabia,” disse Hugo, pegando o charuto do sogro para acender o seu. “Quando o sr. falava em sua casa aqui na montanha, sempre achei que fosse esta.” “A maioria das histórias de fato se refere a esta,” disse o doutor, que, na pia da parede oposta, fazia a torneira jorrar sobre uma caçamba de cubos de gelo, produzindo estalidos. “Vim morar aqui com dez ou onze anos. O mais importante aconteceu aqui.”



Brindaram erguendo os copos. Falaram sobre o passar do tempo. “Disse que a outra casa não existe mais?”, perguntou Hugo, olhando as luzinhas se acenderem nos chalés, em pontos distantes do vale. “Foi destruída acidentalmente. Eu estudava na Europa, tinha ido logo depois da morte dos meus pais,” disse o doutor. “A família do meu pai cuidou de tudo. Não lembro bem como foi”  Uma pausa longa. Hugo; “Uma lareira é um lugar bom para contar histórias, ouvir...”  “Passávamos noites agradáveis junto ao fogo,” disse o doutor. “Era lareira a lenha?” perguntou Hugo. “Não, era a gás, meu pai tinha inventado um sistema de canalização Ele trazia uma parte do gás que alimentava o moinho até nossa casa. Era gás.”


Houve um longo silêncio. “Meu Deus,” disse ele. Depois de mais um silêncio, Hugo falou: “Sabe o que isto significa, não é?  A casa queimou.  O inquérito suspeitou, mas não pôde provar, ter sido um vazamento de gás,”  “Botaram o gás para a festa do meu aniversário de dez anos,” murmurou Amarante. “Só houve o fogo mais de dez anos depois. Não venha me dizer que tem relação.”  Hugo: “Sabíamos que tinha, mas a polícia local, e seus tios, receberam o seguro “sub judice” e botaram uma pedra em cima do processo. Até bem pouco tempo era assim.”  O velho doutor ergueu o rosto. “Desde quando você sabe disso?  Desde quando pensou em arrancar isso de mim?” perguntou. E Hugo: “Desde antes de conhecer sua filha, de casar, de tudo. São milhões. Vários tipos de seguro, de prêmio, sei lá.  As companhias só precisam de uma confirmação idônea de que havia um ‘gatilho’ irregular de gás.”  “O fogo destruiu tudo. Não há provas. Toda a tubulação foi arrancada aos poucos.” “Tiveram tempo para isso?” “Na época, ninguém os estava vigiando.”  Um silêncio. “Quantos milhões seriam mesmo?...”