segunda-feira, 6 de outubro de 2014

3623) Malditos passaportes (6.10.2014)





No meu tempo de estudante dizíamos: “Os americanos vêm ao Brasil e ficam escandalizados em ver que nós somos obrigados a ter uma Carteira de Identidade.  Isso é coisa de prisioneiro. Lá nos EUA isso não existe.  Quando um cara precisa se identificar, apresenta a carteira de motorista. Isso mostra o quanto vivemos num Estado Policial.”  Verdade parcial, como toda verdade.  Para coisas mais oficiais do que um baculejo na calçada, nos EUA, eles requerem o Social Security Number, que parece ser uma espécie de CPF (o cartão não tem foto nem data de nascimento).



A tendência dos Estados é se tornarem mais policiais e controladores à medida que ficam mais ricos e complicados. A documentação das pessoas de cem anos atrás é irrisória se comparada à de hoje.  Lendo biografias vemos como os dados da vida civil dos biografados são cheios de lacunas, de inconsistências, de ausências inexplicáveis. 



Stefan Zweig, em seu livro O Mundo de Ontem (1942) dizia: “Nada deixa mais claro o imenso retrocesso que recaiu sobre o mundo depois da I Guerra Mundial do que as restrições sobre a liberdade de deslocamento do homem e a diminuição dos seus direitos civis. Antes de 1914 a Terra pertencia a todos. As pessoas iam para onde desejassem e ficavam o quanto quisessem. Não havia vistos nem autorizações de permanência, e sempre me dá prazer deslumbrar os mais jovens contando que antes de 1914 viajei da Europa para a Índia e para a América sem ter um passaporte e sem ter em qualquer momento visto um. Embarcava-se e desembarcava-se sem questionar e sem ser questionado: não era necessário preencher um único dos inúmeros formulários requeridos hoje em dia.”



Não há como não lembrar, diante disto, do poema de Maiakóvski (de 1929) sobre o passaporte soviético. Ele começa dizendo: “Às credenciais não lhes tenho respeito. / Que vão para o diabo todos os papéis!”.  Ele ridiculariza as reações do funcionário de fronteira que manuseia os passaportes: respeito diante do documento britânico, mesuras e salamaleques diante do americano (“pegam como se fosse uma gorjeta”), desprezo pelo passaporte polonês...  Mas quando pega o passaporte vermelho da URSS, “pegou-o como uma bomba, pegou-o como a um ouriço, como a uma navalha afiada...”


O poema de Maiakóvski é cheio do orgulho infantil de quem acreditava num Estado e perdoava, compreendendo seus problemas, sua “necessidade de também ser fera”.  Todo poeta sonha numa lua-de-mel com algum tipo de Revolução. Mas quem é adversário do governo ou do Estado vê maquiavelismo em qualquer inovação do setor burocracia-e-controle.  O aumento da segurança de uns é o aumento da opressão dos outros.