sábado, 6 de setembro de 2014

3597) A palavra bola (6.9.2014)



Quando escuto futebol pelo rádio, fico imaginando um estrangeiro ouvindo uma transmissão de futebol aqui no Brasil. Me refiro a um estrangeiro que sabe português, que estudou, que desembarcou aqui botando português pelo ladrão e doido para testar sua pronúncia e seu entendimento. 

O futebol irradiado é uma narrativa que depende de algo externo a si mesma. O narrador não pode narrar algo que não está acontecendo ou não chegou a acontecer, embora o folclore radialístico esteja cheio de episódios mirabolantes vividos pelos grandes locutores e comentaristas dos tempos heróicos.

Fiquei pensando em quantos contextos a palavra “bola” pode aparecer na transmissão de um jogo. E não incluo expressões de fora do futebol, como “dar bola”, “bolar um plano”, etc.  A bola é o substantivo bola, que deve ter um termo equivalente quase inevitável em muitas línguas, ou pelo menos nas que se parecem com a nossa, mas bola também significa passe, jogada. “Olha que bola que Fulano lançou... deixou Sicrano na cara do gol”: a palavra se refere ao lançamento em si.  Bola deixa de ser representada por um ponto, passa a ser uma linha, o trajeto percorrido desde o pé do lançador até o pé do artilheiro. E pode ser também a conclusão da jogada: “como é que você me perde uma bola daquela, rapaz?”. O mesmo sentido está na expressão “a bola do jogo”, uma jogada, geralmente perto do fim, cujo desfecho fará pender a vitória para um lado ou para o outro. 

A palavra também indica a posse, a iniciativa da jogada: “O juiz dá arremesso lateral, Flamengo bola.”  Quando dizemos que Fulano está “batendo a maior bola” quer dizer que está jogando bem, está numa grande fase.  A expressão “Fulano não tem bola pra isso” tem equivalentes em outras profissões, mas no futebol todo mundo geralmente sabe quem é realmente bom em cada departamento. Quem tem bola (quem tem vitórias, títulos, números para apresentar) tem sua voz ouvida. O mundo futeboleiro sabe preservar essa meritocracia do talento puro, onde quem é bom é bom mesmo.

Algumas expressões tiram um fino uma na outra. Um jornal pode dizer, por exemplo: “O juiz do jogo passado comeu uma bola para derrotar o Santos, porque Pelé está comendo a bola e era preciso parar o Santos de qualquer jeito.”  A propina e o desempenho são sugeridas com as mesmas palavras, e talvez o único diferencial seja esse tratamento de “uma bola”, uma coisa qualquer, largada, que a desvaloriza, enquanto que quando dizemos “a bola”, é ela mesma primeira e única.  O nosso hipotético estrangeiro teria que captar todas estas nuances da palavra, apenas vendo seu uso.


3596) Neil Gaiman e a escrita (5.9.2014)





Me perguntaram numa entrevista dias atrás se eu achava Neil Gaiman o melhor escritor da fantasia urbana (ou do “macabro insólito”, não lembro bem que rótulo foi usado).  

Falei que ele era excelente – mas não existe “o melhor”, isso é um conceito esportivo, hierárquico, aritmético, que tem tudo a ver com o esporte mas nada tem com a arte, pois esta se baseia em impressões pessoais e coletivas que mudam o tempo inteiro, e se assemelha mais ao mercado de ações, onde o valor é expresso em quantidades numéricas (dinheiro) mas é medido em fantasias subjetivas grupais (avaliações do mercado).  

Quando terminei de explicar, a repórter estava olhando para o microfone como se ele tivesse acabado de brotar ali na mão dela, e nunca me fez a segunda pergunta.

Resposta: sim, Neil Gaiman é um bom autor (seu eventual parceiro Gene Wolfe é melhor ainda) mas a razão de citá-lo é que eu o sigo no Twitter (@neilhimself), então estou mais exposto a irrelevâncias como ficar sabendo da agenda de noites de autógrafos dele por países inacessíveis, mas também a bate-papos ocasionais. 

Não só ele, sigo algumas dezenas de autores, mas ele é um dos que mais postam, juntamente com Jonathan Carroll e William Gibson. (Mas em surtos. Às vezes somem por semanas a fio.)

Vantagens da cultura digital, substituindo os hollywoodianos “escritórios de divulgação”, que ficavam liberando diariamente factóides sobre os astros seus patrões. Hoje o patrão precisa matar hora numa conexão atrasada e fica trocando idéias com anônimos que lhe perguntam sobre seus livros.  

Perguntado, Gaiman diz que seu filme favorito seria um desses: “If, The Manuscript of Saragossa, e All That Jazz”.  Nunca vi O Manuscrito de Saragoça, adaptação de Wojcieh Jersy Has para o polêmico, misterioso, multiforme e necronômico livro de Jan Potocki (se alguém souber um link pro filme, favor informar.)

Os outros títulos citados por Gaiman eu já vi. 

If, filme inglês de Lindsay Anderson, é sobre a revolta dos estudantes de uma daquelas terríveis escolas-internatos para adolescentes britânicos, um capítulo à parte na história do sadomasoquismo ocidental.  Vi esse filme depois de ter visto Zéro de Conduite de Jean Vigo, um filme parecidíssimo e diferente. 

All that Jazz é aquele filme sobre o diretor de um musical (Roy Scheider) que está pra morrer do coração mas mete o pé na jaca e pipoca o motor e dirige um espetáculo complicado em todos os sentidos. 

O que têm esses dois filmes a ver com a obra de Gaiman, de Sandman a O Livro do Cemitério? Aparentemente nada, e possivelmente alguma coisa, que não está óbvia nos livros mas que pode ser mais bem iluminada em retrospecto.